A Inconstitucionalidade do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) e suas diferenças com o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT)

por Cristiane I. Matsumoto Gago
por William Roberto Crestani
Associados de Pinheiro Neto Advogados

Introdução

A contribuição ao Seguro Acidente do Trabalho (“SAT”) / Risco Acidente do Trabalho (“RAT”), prevista no artigo 22, inciso II, da Lei nº 8.212, de 24.7.1991 (“Lei n° 8.212/91”), foi criada para o financiamento das prestações decorrentes de acidente de trabalho, por intermédio de alíquotas adicionais de 1%, 2% ou 3%, conforme o grau de risco da atividade econômica preponderante seja considerado leve, médio ou grave, incidentes sobre o total das remunerações pagas aos segurados empregados que exercem suas atividades em condições prejudiciais à saúde e sua integridade física.

A definição e a fixação do conceito de atividade preponderante e de quais atividades estariam enquadradas em grau de risco leve, médio ou grave, são atualmente definidas pelo Decreto nº 3.048, de 6.5.1999 (“Decreto n° 3.048/99”).

A fim de promover a prevenção de acidentes laborais foi editada, em 8.5.2003, a Lei nº 10.666 (“Lei n° 10.666/2003”), que criou a possibilidade das alíquotas da contribuição ao SAT / RAT serem reduzidas, em até 50%, ou aumentadas em até 100%, em razão do desempenho da empresa em relação à sua atividade econômica.

Trata-se, portanto, da instituição de um multiplicador denominado Fator Acidentário de Prevenção (“FAP”) sobre a alíquota de 1%, 2% e 3%, que corresponde ao enquadramento da empresa segundo a Classificação Nacional Econômica (“CNAE”), inserida no Anexo V, do Decreto n° 3.048/99, com a redação dada pelo Decreto 6.957, de 9.9.2009 (“Decreto n° 6.957/2009” - o índice FAP deverá variar em um intervalo fechado contínuo de 0,5 a 2,0).

A metodologia para cálculo do FAP está prevista no artigo 202-A do Decreto n° 3.048/99 (com a redação dada pelo Decreto n° 6.957/2009), bem como nas Resoluções n°s. 1.308 (com redação dada pela Resolução MPS/CNPS n° 1.316, de 31.5.2010) e 1.309, ambas de 2009, do Conselho Nacional de Previdência Social (“CNPS”), que leva em consideração, em linhas gerais, os índices de freqüência (dimensão probabilística), gravidade (dimensão social) e custo (dimensão monetária) dos acidentes de trabalho, bem como a natureza dos benefícios previdenciários. Ou seja, a metodologia para cálculo do FAP utiliza: (i) os registros de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT relativo a cada acidente ocorrido; (ii) os registros de concessão de benefícios acidentários que constam nos sistemas informatizados do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, nos anos de 2007, 2008 e 2009; e (iii) os dados populacionais empregatícios registrados no Cadastro Nacional de Informações Social – CNIS do Ministério da Previdência Social (“MPS”).

De acordo com a MPS/CNPS n° 1.316/2010, para fins de apuração do índice FAP de uma empresa, após o cálculo dos índices de freqüência, de gravidade e de custo, são atribuídos os percentis de ordem para as empresas por setor (Subclasse da CNAE) para cada um desses índices. Desse modo, a empresa com menor índice de freqüência de acidentes e doenças do trabalho no setor, por exemplo, recebe o menor percentual e o estabelecimento com maior freqüência acidentária recebe 100%. O percentil é calculado com os dados ordenados de forma ascendente. O percentil de ordem para cada um desses índices para as empresas dessa Subclasse é dado pela fórmula abaixo:

Percentil = 100x(Nordem - 1)/(n - 1)

Legenda
n = número de estabelecimentos na Subclasse; e
Nordem=posição do índice no ordenamento da empresa na Subclasse

Nesse cenário, considerando a metodologia de cálculo do FAP, da forma pela qual o índice do FAP foi disponibilizado, cabe examinar eventuais inconstitucionalidades e ilegalidades perpetradas por tal sistemática.

Importante acrescentar que no passado o Plenário do Supremo Tribunal Federal (“STF”) reconheceu a constitucionalidade da contribuição ao SAT / RAT, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 343.446[1], sob o fundamento de que o fato de a lei deixar para o Regulamento a complementação dos conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica (artigo 5º, inciso II, da CF/88) e tributária (artigo 150, inciso I, da CF/88).

Ocorre que, diferentemente do que foi julgado no passado pelo STF, por meio do Recurso Extraordinário n° 343.446, o que se pretende demonstrar neste artigo é a ilegitimidade do exercício do poder delegado atribuído ao Executivo, para aumentar a alíquota da contribuição ao SAT / RAT, com o acréscimo do FAP, por configurar uma situação abusiva, em total descompasso com os princípios da estrita legalidade, razoabilidade, equidade na forma de participação no custeio, equilíbrio financeiro atuarial, motivação e publicidade.

A comparação entre a contribuição ao SAT/RAT e o FAP torna-se ainda mais pertinente na medida em que recentemente o STF declarou a repercussão geral do Recurso Extraordinário n° 684.261, no qual se discute a constitucionalidade da majoração provocada pela progressividade do FAP.

Portanto, em breve a Suprema Corte terá oportunidade de analisar o assunto de maneira definitiva. Considerando isso, trazemos a seguir alguns aspectos sobre o tema que entendemos devem ser examinados pelo STF, os quais, frise-se, não guardam relação direta com o entendimento firmado anteriormente pela corte sobre a contribuição ao SAT/RAT.

Violação ao Princípio da Estrita Legalidade pelo FAP

Conforme mencionado no item anterior deste artigo, o FAP consiste em um coeficiente a ser multiplicado nas alíquotas básicas da contribuição ao SAT / RAT, para somente então definir-se a alíquota efetiva do tributo, tem-se que esse multiplicador integra a matriz tributária em questão (como critério de mensuração do tributo), ou seja, o SAT / RAT ajustado = SAT / RAT X FAP.

Em razão disso, faz-se necessário reconhecer a patente inconstitucionalidade em que incorre a delegação atribuída ao Poder Executivo, por meio de Decreto autônomo (Decreto m° 3.048/99) e por atos normativos (resoluções n°s. 1.308/2009, 1.309/2009 e 1.316/2010), para estabelecer a metodologia, sistemática, parâmetros e critérios para cálculo e aplicação do FAP[2], pois, de acordo com o princípio da legalidade e da estrita legalidade em matéria tributária[3], essa sistemática só poderia ser veiculada por meio de Lei.

Violação ao Princípio do Contraditório e Ampla Defesa na forma de apresentação do FAP

Em termos práticos, diversos contribuintes se depararam com uma situação bastante peculiar ao consultarem o seu índice multiplicador do FAP disponibilizado pelo MPS. Normalmente, ao verificarem a denominada “Consulta Dados do Processamento por Empresa – FAP”, o MPS apenas indicou o “Percentil de Ordem de Freqüência”, “Percentil de Ordem de Gravidade” e “Percentil de Ordem de Custo”, sem disponibilizar as informações ou mesmo o rol de todas as empresas dentro da mesma subclasse do CNAE, denominado NORDEM, que levam à aferição do seu FAP, nos termos das Portarias Interministeriais MPS/MF n°s. 254, de 25.9.2009, 451, de 23.9.2010, 579, de 23.9.2011 e da Resolução n° 1.308/2009.

A indicação do FAP de cada empresa está diretamente relacionada com a classificação de cada contribuinte dentro da subclasse de seu CNAE, o que significa dizer que os cálculos são comparativos, sendo penalizada a empresa com maior índice acidentário. Contudo, as informações necessárias para tal comparação não foram disponibilizadas pelo MPS, o que impede a avaliação daqueles contribuintes que tiveram sua alíquota majorada pelo FAP. Isso porque não existe informação disponível para viabilizar o confronto entre suas ocorrências em relação às demais empresas do mesmo segmento. Logo, da forma pela qual o FAP tem sido disponibilizado, os contribuintes têm sofrido evidente cerceamento de defesa, que lhes é garantido pelo artigo 5º, incisos XXXV e LV, da CF/88.

Nessa linha, colocam-se Selma de Aquino e Graça e Antonio Carlos Vendrame, em seu artigo “FAP - fator acidentário de prevenção - questionamentos legais[4]:

“Inicialmente a Previdência Social submete o FAP às empresas, mas não abre, pelo menos administrativamente, a possibilidade de contestação dos dados apresentados, contrariando frontalmente o princípio do contraditório e da ampla defesa, eis que as empresas, ao que tudo indica, não terão como discordar dos números apresentados pela autarquia. Assim, só restará a via judicial para contestar o FAP apresentado, inclusive com a utilização de ‘habeas data’ para obter o rol completo de cada índice.

Infelizmente, da forma como a Previdência Social disponibilizou as informações do FAP não há possibilidade de a empresa checar o número apresentado ou reproduzir o cálculo realizado, ficando a impressão de que a autarquia dispõe de uma ‘caixa preta’. Sob o pretexto de manter o sigilo de cada empresa, a Previdência Social não apresenta o rol de todas as empresas de uma mesma classe de CNAE, impossibilitando que cada uma delas reproduza o cálculo de percentil para cada índice.”

Ocorre que, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV, determina que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Geraldo Ataliba, com acuidade que lhe era peculiar, ainda sob a égide da Carta Constitucional de 1969, ensinava com maestria sobre o alcance da garantia constitucional da ampla defesa. Em suas palavras:

“Ampla significa lata, extensa, aberta, irrestrita. É causa de nulidade dos procedimentos qualquer tipo de constrangimento ou restrição que reduza, de qualquer forma, a possibilidade que têm os acusados de deduzirem as suas razões em juízo, assim, como produzirem todas as provas testemunhais, documentais, periciais e outras, em seu benefício, em defesa de seus direitos”.[5] (sem destaque no original)

Ante o exposto, considerando a forma como o FAP foi disponibilizado, fica plenamente demonstrado que, diante da ausência de informações e do rol de todas as empresas dentro da subclasse do respectivo CNAE, que levam à aferição do respectivo FAP, a cobrança na forma em que está sendo feita pelo MPS infringe o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Violação aos Princípios da Regra da Contrapartida, da Eqüidade na Forma de Participação no Custeio e do Equilíbrio Financeiro e Atuarial

Outro ponto a ser mencionado está relacionado ao fato de que o art. 195, §5º, da Constituição Federal, estabelece a regra da contrapartida entre o custeio e o benefício. Tal dispositivo legal foi exemplarmente analisado pelo professor WagnerBalera, em que comenta:

"A regra importa em verdadeira proibição constitucional à instituição de novas fontes de custeio sem destinação precisa, assim como em proibição expressa de criação de novas prestações sem a adequada cobertura financeira"[6]

Verifica-se, portanto a impossibilidade de criação de benefícios sem a devida contraprestação pecuniária. A contrario sensu seria indevida cobrança de contribuição pecuniária sem a devida contraprestação previdenciária. A regra da contrapartida apresenta um caminho de duas vias, onde há benefício deve haver custeio e onde existir custeio deve co-existir o benefício, uma via em função do sistema (contribuição) e outra em função do segurado (benefício).

No âmbito da seguridade social, também deve ser observado princípio da eqüidade na forma de participação no custeio, previsto no inciso V, do parágrafo único, do artigo 194 da Constituição Federal e parágrafo único, do artigo 1º da Lei n° 8.212/91. A equidade exige que o recolhimento seja proporcional ao risco da atividade do contribuinte; de modo que, quanto maior represente, em termos de risco social, a atividade do contribuinte, maior deverá ser o gravame que ele irá suportar para o financiamento da Seguridade Social.

Ademais, a nova alíquota do SAT / RAT será o resultado da composição do SAT / RAT com a nova metodologia do FAP, cuja aplicação deve demonstrar o equilíbrio financeiro e atuarial existente entre o que a empresa paga como contribuição para o Seguro Acidente de Trabalho e o que a Previdência Social paga para o custeio dos acidentes gerados em seu ambiente de trabalho, nos termos do artigo 201 da CF/88.

No entanto, na prática é comum observar que o valor recolhido, a título de contribuição previdenciária para financiamento de benefícios decorrentes de acidente do trabalho ou doença do trabalho supera em muito o valor gasto com o pagamento efetivo dos benefícios previdenciários pelo INSS.

Assim, qualquer aumento da contribuição, levando em consideração a gravidade do risco dos contribuintes no caso concreto, poderá afronta os princípios da regra da contrapartida, da eqüidade na forma de participação no custeio e do equilíbrio financeiro e atuarial, formadores do Sistema de Seguridade Social. A isso, acrescente-se que o fato de a Administração Pública ter aumentado a alíquota SAT / RAT, mediante acréscimo do FAP dos contribuintes, sem demonstrar(i) que houve aumento no risco de acidentes do trabalho, de forma a proporcionar o desequilíbrio financeiro e atuarial, e (ii) a posição individualizada do contribuinte na subclasse CNAE – NORDEM (componente do cálculo do FAP), viola os princípios da motivação e da publicidade (Artigos 1º, inciso II, parágrafo único; 5º, inciso XXXV, e 37, caput da CF/88 e 320 e 368 do Decreto n° 3.048/99).

Conclusão

Como conclusão do exposto, podemos observar que diferentemente do julgamento ocorrido no Recurso Extraordinário n° 343.446, no qual a contribuição ao SAT / RAT foi julgada constitucional sob o argumento de que regulamento editado pelo Poder Executivo poderia definir os conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave”, os quais impactavam na definição e cálculo dessas contribuições, a discussão sobre a legalidade e constitucionalidade do FAP vai além e abrange outros argumentos, notadamente os seguintes:

(i) Violação ao Princípio da Estrita Legalidade;
(ii) Violação ao Princípio do Contraditório e Ampla Defesa;
(iii) Violação aos Princípios da Regra da Contrapartida, da Eqüidade na Forma de Participação no Custeio edo Equilíbrio Financeiro e Atuarial; e
(iv) Violação aos Princípios da motivação e publicidade.

Dessa forma, entendemos que a declaração de repercussão geral do tema FAP pelo STF no Recurso Extraordinário n° 684.261 veio em boa hora, pois será uma oportunidade da Suprema Corte examinar novos argumentos diferentes daqueles analisados anteriormente, não devendo ser confundida a discussão passada sobre a contribuição ao SAT / RAT com a atual acerca do FAP, o qual configura, a nosso ver, um instituto ilegal e inconstitucional pelos motivos acima explicados.



[1]“EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO - SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I.

I. - Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho - SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., art. 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT.

II. - O art. 3º, II, da Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais.

III. - As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II, definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de "atividade preponderante" e "grau de risco leve, médio e grave", não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º, II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I.

IV. - Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional.

V. - Recurso extraordinário não conhecido.” (RE 343446 / SC - SANTA CATARINA, Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento:  20/03/2003)

[2] Já que se trata do aspecto quantitativo do fato gerador da contribuição ao SAT.

[3] Artigos 5º, inciso II; 150, inciso I, ambos da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) e artigo 97, inciso II e parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional (“CTN”).

[4]Suplemento Trabalhista - LTR, São Paulo, v. 45, n. 141, p.681-684, 2009.

[5] Novo Processo Tributário, Ed. Resenha Tributária, 1975, Capítulo “Princípios de Procedimento Tributário”, p. 30

[6]BALERA, Wagner, "A interpretação do Direito Previdenciário" - RPS 236/682. São Paulo: Ed. LTr. Jul/00.