Art. 3º da LC nº 118/05 – Por que a razão estava com o STJ?

por José Guilherme Fontes de Azevedo Costa
Advogado da Petrobras Distribuidora

 

O pagamento de tributos, instituto jurídico relacionado à obrigação tributária principal, é tratado pelo Código Tributário Nacional (CTN) no art. 156, I e VII e nos arts. 157 a 164.

O CTN apresenta, nos arts. 165 a 169, normas relativas ao pagamento indevido e prevê, em seu art. 165, I, o direito do Contribuinte à restituição de tributos (consequência) quando tal impropriedade (causa) é observada. O art. 168, I, por sua vez, regula a prescrição da pretensão do contribuinte a ver restituído o valor indevidamente recolhido, e estabelece como termo inicial do prazo de 5 (cinco) anos “a data de extinção do crédito tributário”.

A definição da expressão “data de extinção do crédito tributário” foi intensamente debatida até que o STJ decidiu (EREsp n. 286.552 – DF, DOU 19/05/2003) pela preponderância da Tese dos “Cinco Mais Cinco”, em detrimento da Teoria da Actio Nata, na contagem do prazo prescricional para restituição de tributos sujeitos ao lançamento por homologação.

Apenas de passagem, é válido recordar que, em síntese, tributo sujeito a lançamento por homologação é aquele em que o contribuinte realiza o pagamento antecipado com base em informações por ele mesmo prestadas e, após, o Estado analisa as informações e o valor recolhido. Estando tudo correto, o Estado procede à homologação do pagamento efetuado.

Embora nada impeça que o Estado proceda à homologação expressa de eventual pagamento antecipado do tributo, observa-se que a dita homologação ocorre, geralmente, de modo tácito. O CTN, em seu art. 150, §4º, informa que, em regra, a homologação tácita se dá 5 (cinco) anos após a ocorrência do fato gerador.

O STJ entendia, até o advento da Lei Complementar (LC) nº 118, de 09 de fevereiro de 2005, que a “data de extinção do crédito tributário” a que alude o art. 168, I, do CTN, deveria ser a data de homologação – tácita ou expressa, haja vista a norma contida no art. 156, VII, do CTN.

Nessa linha de pensamento, não era o pagamento antecipado e indevido, mas o lançamento por homologação, disciplinado pelo art. 150 do CTN, que deflagraria o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para exercer a pretensão de restituição.

Decorre daí o primeiro ajuste semântico: adotar a tese dos “Cinco + Cinco” não redunda, propriamente, em que seja automaticamente concedido ao contribuinte um prazo de dez anos a partir do pagamento indevido para pleitear sua restituição.

É que o primeiro “Cinco” da tese encontra abrigo no art. 150, §4º, do CTN e em uma regra empírica, na qual que se verifica que o Estado trabalha apenas com homologações tácitas – as quais ocorrem 5 anos após o pagamento antecipado. O segundo “Cinco” da tese é aquele do art. 168, I, do CTN, iniciado após o lançamento por homologação.

Deriva disso que, mesmo aplicada a Tese dos “Cinco + Cinco”, basta que o Fisco proceda à homologação expressa em tempo menor (que os cinco anos para homologação tácita) para que o prazo para restituição deixe de ser de dez anos a partir do pagamento antecipado indevido.

O STJ, até 2005, adotava a Tese dos “Cinco + Cinco” porque entendia, em resumo, que o mero pagamento antecipado não tinha o efeito de extinguir o crédito tributário. Apenas a homologação possuía tal eficácia, como se ilustra no trecho abaixo, retirado do Acórdão no REsp nº 644.636 – PE (DOU 03/11/2004):

“Saliente-se que o crédito tributário se constitui pelo lançamento (CTN, art. 142) e se extingue pelo pagamento (CTN, art. 156, I e VII). No entanto, quando se trata de lançamento por homologação, como é o caso do PIS, o pagamento antecipado pelo obrigado extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento, na forma do art. 150, §1º, do CTN. (...). Assim, somente a partir dessa homologação é que se tem início o prazo previsto no art. 168, I, do CTN, razão pela qual, totalizam-se dez anos a contar do fato gerador.”

Depois de estabelecida a Jurisprudência sólida do STJ pela Primeira Seção, foi então editada a LC nº 118/2005, cujo art. 3º se dizia interpretativo e trazia o seguinte:

 “Art. 3o Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida Lei.

Perceba-se, porque de extremo relevo: o que o art. 3º da LC nº 118/2005 fez foi tão somente positivar a Tese de Actio Nata, conferindo ao “pagamento antecipado” uma eficácia (extinção do crédito tributário) que antes o STJ, na leitura do CTN, não lhe dava.

O efeito prático da Lei Complementar foi dar ao pagamento antecipado a consequência de extinguir o crédito tributário; a estrutura da norma no art. 3º da LC nº 118/2005 não se destinou a tratar do instituto jurídico “restituição”, mas a conferir uma qualidade – antes, não consagrada pelo STJ – ao instituto jurídico “pagamento antecipado” de tributo sujeito a lançamento por homologação.

Defendemos que a diferença básica entre os cenários jurídicos anterior e posterior à LC nº 118/2005 não está na restituição (isso é mera consequência), mas na concessão de novo efeito ao pagamento antecipado.

Embora não tenha havido alteração no texto do CTN, a norma efetivamente modificada pela LC nº 118/05 não foi o art. 168, I, do CTN, que continua trazendo uma expressão cujo sentido deve ser extraído de outros artigos – arts. 150 e 156, CTN.

A norma alterada foi aquela que diz respeito aos resultados do pagamento antecipado, encontrada a partir da leitura sistemática dos arts. 150, §§ 1º e 4º, e 156, VII, do CTN. Destarte, se a completude de sentido do art. 168, I depende da norma acima, então a forma como este artigo deve ser interpretado nada mais é do que a inexorável consequência de uma nova qualificação do pagamento antecipado.

Esse ponto é nevrálgico: ainda que não tenha sido essa a intenção do legislador, o que se deseja comprovar aqui é que, juridicamente, a restituição é mero objeto mediato da LC nº 118/05, enquanto seu objeto imediato foi (e não poderia ter sido outro) alterar a eficácia do pagamento antecipado.

O STJ e o STF, ao apreciarem o art. 3º da LC nº 118/05 e sua aparente eficácia interpretativa, reconheceram a norma não como declaratória, mas constitutiva (inovação, logo, eficaz apenas para o futuro). Foi rechaçada por ambas as Cortes, assim, a norma prevista no art. 4º da mesma LC nº 118/2005, que conflitava com a segurança jurídica e o princípio da separação dos Poderes, componentes do núcleo fundamental do Estado Republicano de Direito instituído pela Constituição da República Brasileira.

Na medida em que a análise quanto à retroatividade é matéria com dignidade constitucional, entendemos que, nesse ponto, o julgamento pelo STF no RE se deu no limite de suas atribuições à luz do art. 102, III, da Constituição (CRFB), e preponderaria sobre eventual posicionamento diverso do STJ.

Acreditamos, contudo, que o STF acabou por cometer duplo equívoco ao interpretar o CTN. O primeiro, de ordem formal, por usurpar competência do STJ prevista no art. 105, III, CRFB (ao atuar como último exegeta das normas contidas em uma lei federal ordinária recepcionada como lei complementar). O segundo, de ordem material, eis que a hermenêutica empregada pela Suprema Corte se deu, data venia, em bases imprecisas.

Em primeira análise do tema, o STJ decidiu como viria a decidir o STF, isto é, pela aplicação do art. 3º da LC nº 118/05 aos pedidos de restituição efetuados a partir de 09/06/2005. Apenas em 2009 o STJ reconheceu que o objeto da norma na LC era o efeito do pagamento, em vez da restituição, e afirmou que a Tese Legalmente Qualificada da Actio Nata deveria ser aplicada apenas a pagamentos ocorridos a partir de 09/06/2005 (quando a LC nº 118/05 começou a produzir seus efeitos). Esse histórico é obtido na leitura dos trechos abaixo, extraídos do Acórdão proferido no REsp nº 1.002.932 – SP (DOU 18/12/2009):

“Diante da aludida inovação legislativa, a Primeira Seção reconsolidou a jurisprudência do STJ acerca da cognominada tese dos cinco mais cinco para a definição do termo a quo do prazo prescricional das ações de repetição⁄compensação de valores indevidamente recolhidos a título de tributo sujeito a lançamento por homologação, apenas no que pertine às demandas intentadas antes da entrada em vigor da Lei Complementar 118⁄2005 (EREsp 327043⁄DF, Relator Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 27.04.2005).
(...)
Consectariamente, em se tratando de pagamentos indevidos efetuados antes da entrada em vigor da LC 118⁄05 (09.06.2005), o prazo prescricional para o contribuinte pleitear a restituição do indébito, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, continua observando a cognominada tese dos cinco mais cinco, desde que, na data da vigência da novel lei complementar, sobejem, no máximo, cinco anos da contagem do lapso temporal (regra que se coaduna com o disposto no artigo 2.028, do Código Civil de 2002 (...).

Por outro lado, ocorrido o pagamento antecipado do tributo após a vigência da aludida norma jurídica, o dies a quo do prazo prescricional para a repetição⁄compensação é a data do recolhimento indevido.

(...) razão pela qual forçoso concluir que os recolhimentos indevidos ocorreram antes do advento da LC 118⁄2005, por isso que a tese aplicável é a que considera os 5 anos de decadência da homologação para a constituição do crédito tributário acrescidos de mais 5 anos referentes à  prescrição da ação.”

O entendimento firmado pelo E. STF na apreciação do RE nº 566.621-RS (DOU 11/10/2011) é materialmente semelhante àquele elaborado pelo STJ no acima citado EREsp 327.043⁄DF.

 Sob o ponto de vista formal, entendemos que o Supremo Tribunal, último exegeta da Constituição, invadiu atribuição do STJ ao tentar conferir a uma lei federal uma interpretação diametralmente diversa daquela explicitamente conferida pelo órgão do Judiciário competente, por excelência, pela última palavra no que diz com a leitura da legislação federal.

 No mérito, temos que o entendimento do STF pecou, concessa maxima venia, por focar no mero exaurimento da alteração normativa, em vez de se ater à matriz da alteração normativa. Na medida em que foi modificado o efeito do instituto jurídico “pagamento antecipado”, como tentamos demonstrar, a LC nº 118/05 só poderia ser aplicada aos pagamentos efetuados após 09/06/2005.

 O posicionamento adotado no STF pela aplicação da LC nº 118/05 aos pedidos de restituição posteriores a 09/06/2005 (ainda que relativos a pagamentos indevidos anteriores a essa data) significa não apenas ignorar a origem da discussão, mas confundir causa e efeito (subvertendo a lógica jurídica), usurpar competência do STJ e instituir um grau de retroatividade que não encontra amparo na Constituição da República.