International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Conflito de Interesses e Competências na Industrialização por Encomenda - ISS ou ICMS – necessária definição para alcance de segurança jurídica

por Leonardo Cavalcanti Sá de Gusmão
Pós-graduado em direito tributário pela Universidade Cândido Mendes
Supervisor do contencioso tributário de Gaia, Silva, Gaede e Associados

 

No âmbito do direito tributário pátrio, não são poucas as controvérsias verificadas a respeito da incidência do ICMS ou do ISS sobre determinada atividade, tendo como pano de fundo, em essência, uma disputa arrecadatória entre os Municípios e os Estados da Federação.

Apenas para ilustrar alguns exemplos que vêm surgindo neste tipo de disputa, discutia-se a respeito de qual das exações citadas incidiria sobre a atividade de produção de software, devendo ser verificado se este representava um programa personalizado, ou o chamado “software de prateleira”. Também se debateu em relação à atividade de afretamento de embarcações, se esta representaria uma espécie de serviço ou, então, transporte intermunicipal ou interestadual de cargas; a peleja definiu-se por uma espécie de atividade sui generis, em posicionamento sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, a discussão a respeito da incidência do ISS ou do ICMS em determinado serviço tem seu ponto de partida na matriz constitucional dos mencionados impostos; o artigo 156, III, CF/88, dispõe que aos Municípios caberá a instituição do ISS sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, da própria Carta Magna, hipótese esta que contempla a incidência do ICMS – além da circulação de mercadorias – sobre os serviços de transporte interestadual e intermunicipal, bem como os de comunicação.

Fato é que a disciplina constitucional dos aludidos impostos não tem se caracterizado como normatização suficiente a evitar, como exposto brevemente acima, disputas a respeito da incidência do ISS ou do ICMS sobre determinada atividade.

E neste particular, adentrando especificamente à matéria em análise, questão ainda não definida pela jurisprudência pátria – apesar de já haver sinalização do STF em determinado sentido – diz respeito à exigência do ICMS ou do ISS sobre a chamada industrialização por encomenda.

Segundo o artigo 4º, do Regulamento do IPI, em linha com o artigo 46, do Código Tributário Nacional, caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tais como a transformação, o beneficiamento, a montagem, o acondicionamento ou reacondicionamento, bem como a renovação ou recondicionamento.

Neste sentido, a chamada industrialização por encomenda ocorre, na maioria das vezes, como uma etapa prévia e necessária para se promover a saída posterior de determinado bem ou mercadoria. Tem-se, então, como premissa inicial, que a industrialização por encomenda, em regra, consiste em uma atividade-meio, que não se encerra em si própria.

Tal expediente mostra-se bastante comum para a obtenção de embalagens, rótulos e/ou recipientes de acondicionamento (além de outras atividades) em  relação a produtos objeto de uma cadeia de industrialização e que chegarão ao consumidor.

Pois bem, o legislador complementar, ao definir a lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003, dispôs, no item 13.05, que a composição gráfica, fotocomposição, clicheria, zincografia, litografia, fotolitografia, são espécies de serviço, tributáveis pelo ISS. Também, no item 14.05, constam atividades, tais quais o recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, dentre outras, que são enquadradas dentro do conceito de industrialização por encomenda, por se constituírem, em regra, em mera etapa da industrialização do próprio produto final.

A matéria, então, aparenta-se tortuosa a partir do momento em que o produto resultante das atividades acima enumeradas (a embalagem, o recipiente etc.) serve, apenas, como meio para a realização de um negócio jurídico futuro, que resultará na saída de produto industrializado, hipótese representativa de incidência do IPI, além do próprio ICMS.

 Na prática, a mercadoria seria alienada ao consumidor final contemplando a incidência de três impostos distintos, de três entes tributantes diferentes, o que, certamente, aumentará seu custo de produção e contribuirá, de forma dramática, para a formação de seu preço final. Eis, então, mais uma mostra requintada do odioso “Custo Brasil”.

Instado a manifestar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, pelo que demonstram vários julgados emanados de ambas as turmas de direito público, posicionou-se pelo cabimento da incidência do ISS sobre as atividades de industrialização por encomenda. O argumento de que tal atividade seria apenas meio para a consecussão final de industrialização e/ou comercialização da mercadoria, objeto de nova incidência tributária, não sensibilizou o Tribunal da Cidadania.

Segundo trecho da ementa do Recurso Especial nº 888.852/RS,da lavra do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, “a industrialização por encomenda constitui atividade-fim do prestador do aludido serviço, tendo em vista que, uma vez concluída extingue o dever jurídico obrigacional que integra a relação jurídica instaurada entre o prestador (responsável pelo serviço encomendado) e o tomador (encomendante)...”

A aludida posição do STJ, ainda que possa encontrar algum eco diante de uma interpretação literal do conceito de serviço e da relação entre prestador e tomador de serviço, não deve subsistir diante de uma análise macro da questão, envolvendo não apenas a análise da atividade final na qual se insere a industrialização por encomenda como apenas uma etapa, mas também os conceitos de Capacidade Contributiva, Não Confisco e Justiça Fiscal.

Doutrina abalizada sobre o tema há muito vem questionando a exigência do ISS nas atividades de industrialização por encomenda quando estas são parte de um ciclo produtivo, que somente consumar-se-á com a vindoura industrialização e/ou comercialização.

Alexandre Macedo Tavares e o Ministro aposentado do STJ, José Delgado[1], bem asseveraram que, na lista de serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, adotava-se de forma expressa o critério de destinação para delimitar as materialidades do ICMS, do IPI e do ISS, o que acabou sendo suprimido na Lei Complementar nº 116/2003, verbis:

“Ocorre que a lista anexa à LC nº 116/2003 não utilizou expressamente o cirtério da destinação para definir o âmbito da incidência do ISS, do ICMS e do IPI, já que houve supressão da expressão “de objetos não destinados à industrialização ou comercialização”, na parte final do item 14.05.

Justamente esse silêncio normativo passou a ser interpretado pelos Municípios como uma franca e implícita autorização de fazer incidir ISS sobre as operações de beneficiamento, ainda que realizadas nas etapas que integram o ciclo industrial....

Não se deve prestigiar canhestro raciocínio jurídico, pois, a toda evidência, afigura-se incompatívelo com o critério residual pressuposto constitucionalmente para se extremar os campos materiais de incidência do IPI e do ISS, à medida que a Lei Complementar (LC nº 116/2003) não se revela a via legislativa apta à inserção ou exclusão de certa situação fática no figurino constitucional de incidência do ISS, do ICMS, do IPI ou de qualque outro imposto.

Em outros termos, inexiste impedimento para que conste, abstratamente na lista de serviços tributáveis pelo ISS, atividades que, objetivamente consideradas, tenham as mesmas características daquelas que configuram industrialização, nos moldes das regras disciplinadoras do IPI (v.g., lavagem, beneficiamento, tingimento). Mas, obviamente, por imperativo constitucional, tais atividades jamais poderão sujeitar-se ao imposto municipal se realizadas numa das etapas do ciclo de industrialização (=industrialização intermediária).”

Com efeito, pela própria disciplina constitucional de outorga de competência aos Entes Tributantes para a instituição dos impostos que lhe caibam, verifica-se que a ocorrência de uma das hipóteses de incidência do IPI , qual seja, a saída de produtos industrializados, também representa situação jurídica ensejadora da incidência do ICMS, por representar circulação de mercadorias.

Logo, em nossa visão, não poderia uma mesma mercadoria carregar a pecha de uma incidência tripla, a do ISS (etapa prévia da industrialização por encomenda), do IPI (saída de produto industrializado) e do ICMS (circulação da mercadoria em razão da saída).

Como bem expunha o mestre Geraldo Ataliba [2]“Onde cabe ISS, não cabe ICM; onde cabe ICM não cabe ISS; onde cabe ISS, não cabe IPI; onde cabe IPI, não cabe ISS.”

Sobremaneira, aqui não se está defendendo que em nenhuma situação o ISS possa incidir sobre as atividades listadas nos itens 13.05 ou 14.05, da Lista Anexa de Serviços à Lei Complementar nº 116/2003; simplesmente, verifica-se que esta possibilidade de incidência ou não deverá, necessariamente, analisar se tal serviço está servindo como meio para a consecussão de outro bem ou mercadoria , ou se está exaurindo, naquele momento, a própria cadeia produtiva.

A matéria ainda pende de solução no Supremo Tribunal Federal, que a examina nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN nº 4.389, proposta pela Associação Brasileira de Embalagens, em 03.03.2010. Nesta ADIN, o Tribunal Pleno do STF deferiu medida cautelar, para “Até o julgamento final e com eficácia apenas para o futuro (ex nunc), ... interpretar o art. 1º, caput e § 2º, da Lei Complementar 116/2003, e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa, para reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subseqüente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS.”

A posição previamente emanada do STF, ainda que em caráter de cognição sumária, em sede cautelar, demonstra a necessidade de preservação da competência constitucional do âmbito de incidência do IPI e do ICMS – ciclo industrial produtivo de bem a ser comercializado – em detrimento do afã arrecadatório das municipalidades.

Ainda, cremos que a análise constitucional do tema também pode considerar que, mantendo-se a exigência do ISS na etapa intermediária, além do IPI e do ICMS, na saída do produto, haverá notória e ofensiva majoração da carga tributária incidente sobre a operação, criando um efeito cascata – insanável pela sistemática da não cumulatividade pela situação híbrida criada – eis que haverá incidência prévia do ISS e depois do ICMS e do IPI, sem qualquer crédito a ser tomado ou abatido.

Por conseguinte, a manutenção do ISS na industrialização por encomenda, nos moldes discutidos, encerrará tributação com notório efeito confiscatório, acarretando, também, ofensa ao próprio Princípio da Capacidade Contributiva e ao conceito mais amplo e sempre almejado de Justiça Fiscal.

Referências Bibliográficas

Tavares, Alexandre Macedo; Delgado, José Augusto. “Não incidência do ISS sobre a Atividade de Beneficiamento (Alvejamento e Tingimento) de Produtos Têxteis Destinados a Posterior Comercialização ou Industrialização pelos Encomendantes”, Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT) nº 204, Setembro/2012, p. 108

[1] Ataliba, Geraldo. “Conflito entre ICMS, ISS e IPI”. Revista de Direito Tributário nº 7/8. São Paulo: RT, janeiro/junho de 1979, p.119

 



[1]Tavares, Alexandre Macedo; Delgado, José Augusto. “Não incidência do ISS sobre a Atividade de Beneficiamento (Alvejamento e Tingimento) de Produtos Têxteis Destinados a Posterior Comercialização ou Industrialização pelos Encomendantes”, Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT) nº 204, Setembro/2012, p. 108

[2]Ataliba, Geraldo. “Conflito entre ICMS, ISS e IPI”. Revista de Direito Tributário nº 7/8. São Paulo: RT, janeiro/junho de 1979, p.119