International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Industrialização por encomenda como tendência de configuração produtiva

por Camila Spósito
advogada do A.Lopes Muniz Advogados Associados
formada pela USP
mestranda em Direito Econômico, Financeiro e Tributário na mesma instituição

 

O objetivo deste artigo é tratar do tema dos conflitos de competência tributária que orbitam a industrialização por encomenda com um enfoque econômico, na tentativa de contemplar o aspecto tributário em sua relação com a dinâmica de geração de riquezas.  

A maioria das competentes análises juridicas que buscam delimitar tributariamente a industrialização por encomenda traçam sua argumentação no sentido da norma para o fato, itinerário cuja validade é inquestionável, visto que privilegia a segurança[1] (sem esquecer, é claro, que tal modalidade de interpretação está lastreada no princípio da legalidade). Contudo, embora a industrialização por encomenda (o fato) manifeste um problema de bitributação, parece-nos que o que gera tal problema atualmente é mais uma confusão ou obscuridade quanto à natureza deste fato do que imprecisão ou inadequação técnico-normativa, motivo pelo qual percorreremos o caminho inverso:

O termo “industrialização por encomenda” tem sido utilizado no Brasil para designar operações de fragmentação industrial do tipo outsourcing[2], nas quais uma ou várias das etapas do processo de produção de um bem deixam de ser realizadas pela empresa que posteriormente revenderá este bem finalizado e passam a ser realizadas por outras empresas contratadas. O apelo de fragmentar a produção reside na diminuição dos custos marginais, ao possibilitar aproveitamento das vantagens comparativas que determinado espaço/cenário econômico detém sobre certas variáveis (o preço da mão de obra em países subdesenvolvidos como exemplo clássico).

Não é apenas a empresa que ganha ao se estruturar sob a lógica do outsourcing, mas toda a sociedade[3], pois a especialização, além de mais propensa a inovações tecnológicas, permite que tais procedimentos possam ser “encaixados” em processos de produção do qual não faziam parte, dinamizando a economia de maneira criativa. Os casos paradigmáticos mais estudados para ilustrar o fenômeno são os da indústria automobilística[4], cujas etapas não podem ser compreendidas como um fim em si.

No entanto, os processos que aparecem nos leading cases do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) referem-se em sua maioria ao setor de metalurgia, polimento de rochas e embalalagens (beneficiamento e acondicionamento), que, ao contrário, poderiam ser compreendidos, e frequentemente são, como um fim em si, vez que implicam, a um só tempo, (i) a circulação de bens que, caso sejam entendidos como mercadorias, podem atrair a hipótese de incidência do ICMS[5]; (ii) a transformação, ainda que parcial, e posterior circulação destes bens em algo diferente do que eram, com agregamento de valor, o que atrai a incidência do IPI[6]; por meio de um procedimento (iii) que vem elencado como serviço tributável no item 14.5 da Lei Complementar n.116 de 2003[7], o que atrai incidência do ISS.

Na vigência do Decreto n. 406 de 31 de dezembro de 1968 os serviços que protagonizam análises judiciais dos conflitos de competência no âmbito da industrialiação por encomenda estavam elencados no item “72”, que determinava residualmente  a incidência do ISS – desde que não fossemdestinados à industrialização ou comercialização”[8].

Quando a LC 116/03 foi promulgada, a ausência das referidas ressalvas contidas no Decreto n. 406/68 foi comemorada apressadamente[9], pois ao atrair a incidência do ISS atrair-se-ia também uma alíquota menor que a do ICMS. Porém, logo percebeu-se que a tributação pelo ICMS/ IPI era mais vantajosa[10], visto que submetido à sistemática não cumulativa e em regime de suspensão.

Entre 2006 e 2011, o STJ, seguido pelos Tribunais de Justiça, havia pacificado o entendimento[11] de que, uma vez a industrialização por encomenda constituísse em procedimento elencado na lista anexa à LC n. 116/2003, configurar-se-ia a incidência do ISS por ser a atividade-fim da empresa contratada e por tratar-se de uma obrigação de fazer e não de dar, sem considerar a função daquele procedimento em uma determinada cadeia produtiva. Tais precedentes foram provocados por contribuintes que encomendavam o polimento de granitos ou beneficiamento de metais para integrá-los como insumos em seus processos produtivos, com a intenção de afastar a incidência do ISS.

Em abril de 2.011, o STF deferiu medida liminar em Ação direta de Inconstitucionalidade n. 4389 (ADI 4389) para afastar a incidência do ISS - a solução estaria nopapel que esta atividade tem no ciclo produtivo”[12]. Desta vez, o contribuinte insatisfeito com a tributação municipal encomendava a industrialização da composição gráfica de embalagens que posteriormente integrariam os produtos finalizados, procedimento que consta no item 13.05 da LC 116/30.

A argumentação do STF traz a perspectiva que assinalamos acima, isto é, a busca da compreensão do fato em suas raízes materiais e sua contextualização em um dado momento histórico de desenvolvimento das forças produtivas. Fala-se em possível obsolescência da divisão de competências entre os entes federados (“concepção fortemente arraigada nas noções mercantilistas”) e fluidez dos conceitos como “serviços” e “circulação de mercadorias”[13].

Embora tratasse de procedimento diverso daquele analisado pelo STJ, o impacto da abordagem do STF já influenciou aquele, que alterou ligeiramente seu entendimento[14] ao analisar um caso que envolvia a encomenda de embalagens de uma empresa à outra. A incidência do ISS foi mantida pois a encomenda de embalagens não se destinava à integração em posterior processo de industrialização, como ocorria no caso da ADI 4389.

Em favor dos municípios, poder-se-ia objetar que a “circulação” que ocorre na industrialização por encomenda não é a circulação jurídica necessária à hipótese de incidência do ICMS, visto que não enseja transferência de propriedade. Porém, o melhor entendimento é aquele que considera o fato em sua contemporaneidade, em harmonia com a tendência à fragmentação da produção, antes de procurar uma palavra que o invoque na norma.

A incidência do ISS somente se sustenta se sacralizarmos o conceito de “prestação de serviços”, ignorando tanto tratamento histórico do tema quanto as evoluções da dinâmica produtiva, ou então privilegiarmos cegamente a característica de taxatividade da lista anexa à LC n.116/03, opção que sem dúvida trará consequências indesejáveis sobre a economia como um todo.

Falamos de perturbação do processo produtivo com um tributo que é cumulativo e estranho à vida mercantil (ISS), desequilíbrio de receitas entre os entes federados (com favorecimento dos municípios, pois a produção cindirá em inúmeros “prestadores de serviço”), que poderia resultar na obstaculização do tão almejado desenvolvimento, por proibição do aproveitamento das vantagens da fragmentação produtiva realçadas acima.  



[1] Ao buscar em primeiro lugar a segurança, a exegese do tipo norma – fato poderia ser apontada também como essencial aos advogados e contribuintes, pois são esses que buscam a segurança frente ao poder tributante e suas não raras arbitrariedades.

[2] “ (...)Como conceito de "Industrialização por Encomenda", temos que esta é uma operação de acabamento, uma "atividade meio" para obtenção de nova mercadoria ou para aperfeiçoamento de produto destinado a posterior etapa de industrialização ou comercialização, ou seja, uma atividade meio realizada em um objeto, que posteriormente será negociado, industrializado.”Parecer normativo n. 4 de 2.004, Sefaz-ES.

[3] Não ignoramos possíveis impactos negativos que o outsourcing pode ter na manutenção de uma condição de dependência econômica nos países subdesenvolvidos, ao manter potencialmente suas economias calcadas no uso intensivo de suas forças de trabalho e no fornecimento de matérias-primas sujeitas à deterioração dos termos de troca pela não apreensão de expertise em pesquisa e desenvolvimento, apenas reconhecemos que, do ponto de vista da organização da produção, os ganhos em eficiência são patentes.

[4] Ver “Vertical Intra-Industry Trade and Product Fragmentation in the Auto-Parts Industry”, Kemal Türkcan, Department of Economics, Akdeniz University, Dumlupinar Bulvari Kampus, 07058 Antalya, Turkey, disponível na biblioteca virtual da Lisboa School of economics and Management, através do link: https://aquila4.iseg.ulisboa.pt/aquila/getFile.do?method=getFile&fileId=222152)

[5]: Art. 155, II, § 2º e 3º da Constituição Federal de 1988; artigo 2º da Lei Complementar n. 87 de 13 de setembro de 1.996; Súmula 166 do STJ. “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.

[6] Artigo 4o (definição de industrialiação), 9º, V (equiparação da empresa contratada à estabelecimento industrial em industrialização por encomenda),  do Decreto n. 7212 de 15 de junho de 2.010; Artigo 153, IV, §3º, inciso II da CR/88 e arts. 43 e 51 do Código Tributário Nacional.

[7] LC. 116/2003, lista anexa:  “14.05 – Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer.

[8] “Decreto n. 406/68, item n.72. Recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos não destinados à industrialização ou comercialização;”

[9] Solução de Consulta n.19/2011, do Departamento de Tributação e Julgamento da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo :“(...)4. Antes da Lei Complementar nº 116/2003 e da Lei nº 13.701/2003, estavam em vigor o Decreto-Lei nº 406/68 e a Lei nº 10.423/1987. O item 71 da lista de serviço anexa à Lei nº 10.423/1987 (item 71 da lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/68), previa a incidência do ISS sobre os serviços de recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos não destinados à industrialização ou comercialização.(...)”.5. Já o subitem 14.05 da lista de serviços constante do art. 1º da Lei nº 13.701/2003, que reproduziu os dizeres do subitem 14.05 da Lei Complementar nº 116/2003, suprimiu a expressão "de objetos não destinados à industrialização ou comercialização", a saber: 14.05 - restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer.6. A mudança na redação do item 71 da lista de serviço anexa à Lei nº 10.423/1987 para a redação do item 14.05 da lista de serviços constante do art. 1º da Lei nº 13.701/2003 teve claramente o intuito de ampliar a incidência do ISS nos serviços classificados como "industrialização por encomenda". 

[10] É oportuno mencionar que durante a industrialização por encomenda, tanto o IPI quanto o ICMS incidentes são diferidos para momento posterior,   segundo os artigos 43, incisos VI e VII, do RIPI/10 402 do RICMS/00, desde que:
(a) o produto se destine à comercialização, novo processo de industrialização ou a emprego no acondicionamento de produtostributados; (b) o industrializador não tenha empregado produto de sua própria fabricação ou importação e
(c) os insumos sejam remetidos ao estabelecimento encomendante em até 180 (cento e oitenta) dias sob pena de ser exigido o imposto devido por ocasião da saída, sujeitando o autor da encomenda ao recolhimento espontâneo com os devidos acréscimos legais exigidos na legislação (artigo 410 do RICMS/00);

[11] STJ, Primeira Turma, Recurso Especial n. 1097249, 2008/0220676-1;  Recurso especial n. 888.852, 2006⁄0205159-0. Segunda Turma, AgRg no AI n.1.279.303,2010/0031188-1 . Em tais casos, a industrialização por encomenda envolviam recorte e polimento de granitos e mármores ou beneficiamentos de objetos metálios que posteriormente eram devolvidos à empresa contratante para serem usados como insumos em continuidade à industrialização.

[12] “Constitucional. Tributário. Conflito entre imposto sobre serviços de qualquer natureza e imposto sobre operação de circulação de mercadorias e de serviços de comunicação e de transporte intermunicipal e interestadual. Produção de embalagens sob encomenda para posterior industrialização (serviços gráficos). ação direta de inconstitucionalidade ajuizada para dar interpretação conforme ao o art. 1º, caput e § 2º, da lei complementar 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa. fixação da incidência do icms e não do iss. medida cautelar deferida. Até o julgamento final e com eficácia apenas para o futuro (ex nunc), concede-se medida cautelar para interpretar o art. 1º, caput e § 2º, da Lei Complementar 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa, para reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subseqüente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS.” (STF, Pleno, ADI n. 4389, Julgamento de 13/04/2011)

[13] Apenas a título de curiosidade, a fluidez dos conceitos como proposta hermenêutica, frente à definição rígida dos mesmos tem sido defendida magistralmente pelo Professor José Maria Arruda de Andrade desde seu doutorado (“Interpretação da Norma Tributária (concreção normativa, teoria estruturante do direito e análise pragmática)”,2005), com destaque para o artigo “Hermenêutica Juridica e a Questão da Textura Aberta”,  ANDRADE, José Maria Arruda de. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 103, p. 458-474, 2008.

[14]STJ, Segunda Turma, Recurso Especial n. 2013/0064897-0, julgamento de 10.9.2013.