International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Parecer PGFN/CAT nº 2.363 e as Remessas para o Exterior por Serviços sem Transferência de Tecnologia

por Eric Hissashi Nagamine
Advogado do escritório Gaia, Silva, Gaede & Associados em São Paulo
Pós-graduando em Direito Tributário pela GVLaw
Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

1. Introdução

Os tratados para evitar a dupla tributação têm por intuito primordial minimizar os efeitos da bitributação ou da não tributação em transações internacionais. Ocorre que, não obstante a celebração destes acordos, muitas vezes a dupla-tributação do rendimento não é evitada, pois o fisco brasileiro frequentemente confere uma intepretação aos artigos dos tratados que colide com aquela empregada internacionalmente.

Assim ocorre com a questão das remessas efetuadas para o exterior decorrentes de contraprestação pelos serviços tomados sem transferência de tecnologia.

De fato, até ser noticiada a publicação do Parecer PGFN/CAT nº 2.363, a Receita Federal do Brasil (“RFB”) manifestava-se frequentemente[1] no sentido de que estes rendimentos estariam sujeitos ao IRRF, por decorrência de: (i) uma intepretação particular a respeito do conceito de “lucro” contido nos tratados; e (ii) uma suposta prevalência da lei interna publicada sobre os tratados internacionais.

Em dezembro de 2013, no entanto, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”), emitiu o parecer PGFN/CAT nº. 2.363, apresentando um novo entendimento da administração tributária a respeito do assunto. Interessante mencionar que a emissão deste Parecer foi motivada por um pedido formulado pela própria RFB com o objetivo de revisar o posicionamento até então adotado, haja vista a intenção do Governo da Finlândia em denunciar o Tratado firmado com o Brasil caso tal posicionamento do fisco prosperasse.

Diante deste cenário, o presente estudo tem por objetivo analisar de forma objetiva os argumentos que usualmente eram levantados pela fiscalização para sustentar a tributação do IRRF nessas operações bem como apresentar o novo posicionamento contido no parecer PGFN/CAT n°. 2.363/2013.

 1. Do Artigo 7º dos Tratados para Evitar Dupla Tributação

Dispõe o artigo 7º da Convenção Modelo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE[2], em seu parágrafo 1º, que os lucros de uma empresa de um Estado contratante somente serão tributáveis neste Estado (Estado da residência do prestador de serviço), exceto se as atividades desta empresa forem exercidas por meio de um estabelecimento permanente situado no Estado do tomador dos serviços (Estado da fonte).

Ao interpretarem o referido artigo, as autoridades fiscais empregavam uma interpretação particular, entendendo que o conceito de lucro previsto neste dispositivo corresponderia, em verdade, ao lucro real da empresa estrangeira, o qual somente seria apurado no final do exercício mediante a aplicação dos ajustes (adições e exclusões) previstos na Lei interna.

A aplicação desta interpretação levava o fisco a concluir que os rendimentos pagos a prestadores de serviços estrangeiros não estariam aptos para se qualificar no artigo 7º da Convenção-Modelo. Como resultado desta interpretação, a fiscalização qualificava os rendimentos percebidos por prestadores de serviços estrangeiros, no âmbito dos Tratados firmados pelo Brasil, como “Rendimentos não Expressamente Mencionados” (Artigo 21 da Convenção-Modelo), o que lhes permitia tributar pelo IRRF as remessas como contraprestação de tais serviços.

Esta pretensão da RFB em qualificar tais rendimentos no artigo 21 dos Tratados sofreu diversas críticas, visto que a aplicação deste dispositivo em tais casos não guarda qualquer relação com a prática internacional. De fato, se voltarmos nossas atenções para prática adotada internacionalmente, notaremos que as jurisdições de outros países usualmente consideram a aplicação do artigo 7º como a regra geral para a tributação de rendimentos desta espécie, pois partem da premissa de que tais valores constituem um componente do lucro das empresas. Seguindo esta linha, temos os comentários do Comitê Fiscal da OCDE que trazem importante diretriz quanto ao alcance do termo “lucros” contido nos tratados[3], senão vejamos:

Embora não tenha sido considerado necessário na presente convenção definir o termo “lucros”, ele deve ser entendido, contudo, sempre que for utilizado nesse artigo e em qualquer outra parte desta Convenção, em um sentido amplo, incluindo todos os rendimentos auferidos em uma empresa” (Tradução Livre)

Conforme se pode notar, a prática internacional confere ao o termo “lucros”, contido nos tratados, um significado amplo, compreendendo-o como qualquer rendimento que a empresa estrangeira venha a auferir e que sejam decorrentes de sua atividade empresarial.[4]

Com efeito, é inegável que os rendimentos recebidos pelas empresas estrangeiras nestas situações fazem parte de seu lucro, pois constituem um componente que acrescem o seu patrimônio. Destarte, o conceito de “lucro das empresas estrangeiras” presente nos tratados se equivaleria ao “lucro operacional” e não ao “lucro real”, conforme pretendido pela fiscalização.

Aliás, se fosse entendido que o conceito de “lucros” do artigo 7º equivaleria ao “lucro real”, este dispositivo dos tratados seria esvaziado, pois nenhum rendimento se enquadraria no conceito de lucro ali referido, na medida em que, para a apuração do lucro real, os ajustes necessários (adições, exclusões ou compensações legais) só se farão ao final do exercício e mediante a aplicação da legislação interna do país de residência. Sendo assim, verifica-se inapropriado o entendimento que vinha sendo adotado pela RFB de afastar a qualificação destes rendimentos do âmbito do artigo 7° dos Tratados e, por conseguinte, pretender tributá-los pelo IRRF.

Ressalte-se que estas foram as conclusões do Superior Tribunal de Justiça – STJ presentes no REsp nº. 1.161.467/RS que, rechaçando a pretensão fiscal de tributar as remessas de rendimentos desta espécie, firmou o entendimento de que tais valores, por serem qualificados no artigo 7º dos Tratados, deveriam sofrer a tributação apenas no Estado de residência.

Diante destes argumentos, e em especial em virtude de sua acolhida pelo STJ, a PGFN modificou o entendimento do órgão, concluindo no parecer que “as remessas ao exterior decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia melhor se enquadram no artigo 7º (“Lucros das Empresas”) dos mencionados pactos, ao invés dos arts. 21 ou 22 (“Rendimentos não Expressamente Mencionados”). Assim, tais valores seriam tributados somente no país de residência da empresa estrangeira, não estando sujeitos à incidência do IRRF”.

 2. Antinomia entre Tratados e Lei Interna

Outro argumento usualmente levantado pela RFB para sustentar a tributação do IRRF nestes casos corresponderia a existência de um eventual conflito entre os tratados e o disposto no artigo 7º da Lei nº. 9.779/99, que estabelece a tributação de rendimentos pagos para o exterior decorrentes de prestação de serviços.

De acordo com os argumentos trazidos pelas autoridades fiscais, considerando que a Lei nº. 9.779/99 é posterior à internalização de determinados Tratados celebrados pelo Brasil, haveria a prevalência do artigo 7º da referida Lei sobre tais Tratados, uma vez que se aplicaria a regra de que a lei posterior, quando não compatível com lei anterior sobre o mesmo objeto, acaba por revogar a lei antes editada (lex posterior derrogat priori).

A aplicação desta regra, no entanto, não serve para o caso dos Tratados Internacionais, na medida em que é descabido falar em revogação de tratados por norma interna. Com efeito, seguindo a mesma linha de raciocínio apresentada pelo Ministro Castro Meira, no REsp nº. 1.161.467/RS, as supostas antinomias existentes entre os Tratados e o Direito interno são sanadas através da aplicação do princípio da especialidade, sendo descabido falar em revogação ou derrogação de norma interna. Neste sentido, em situações em que se verifica este aparente conflito, aplica-se a regra dos Tratados, por se tratar de norma específica frente à uma norma geral, que é aquela presente na Lei interna.

Com isso, nestes casos de aparente conflito, a norma interna continuaria perfeitamente válida, sendo aplicada nos casos em que a situação analisada não se encaixa na característica de especialidade dos tratados. Ou seja, haveria tão-somente uma “revogação funcional” da norma interna, fazendo com que exista uma limitação de eficácia normativa quando determinadas características façam com que aquele fato específico esteja abrangido pelo tratado[5].

No mesmo sentido de que os tratados não revogam as normas internas, está o ensinamento de KLAUS VOGEL. De acordo com a teoria da máscara de KLAUS VOGEL, através da celebração de um tratado para evitar dupla tributação, uma máscara seria colocada sobre a lei interna, de modo que os buracos remanescentes, os quais a máscara não atinge, a aplicação da norma interna pode ser efetivada; enquanto na parte em que a norma interna é completamente escondida pela máscara, faz-se mister a aplicação do tratado internacional[6].

Portanto, verifica-se que não é possível falar em revogação do Tratado Internacional pela Lei Interna ou de sua prevalência sobre o acordo, pois o que se têm, na realidade, é a existência de uma norma específica que, por sua especialidade, sendo ela anterior ou mesmo posterior à Lei interna, sempre sobre ela prevalecerá.

Acolhendo esta linha de entendimento, o parecer PGFN/CAT n°. 2.363/2013 concluiu que, em casos de supostas incompatibilidades entre a legislação interna e os dispositivos contidos nos Tratados, o princípio da especialidade deve ser aplicado como critério para solucionar a questão, havendo prevalência, por conseguinte, dos Acordos Internacionais sobre a lei interna.

 3. Conclusão

Conforme pudemos notar, a PGFN, ancorando-se nos precedentes verificados na esfera judicial sobre o tema, revisou o entendimento que vinha sendo aplicado pela administração tributária a respeito da incidência do IRRF nas remessas de valores ao exterior para pagamento de serviços técnicos e assistência técnica, sem a transferência de tecnologia. Neste sentido, acompanhando o entendimento do STJ, passou a se posicionar de forma a qualificar tais rendimentos como “Lucro das Empresas” (artigo 7º da Convenção Modelo) e, por conta disso, a entender como indevida a tributação do IRRF, já que este dispositivo dos Tratados atribui apenas ao Estado de residência o direito de tributar tais rendimentos.

Ao nosso ver, entendemos que a revisão deste posicionamento pela Administração Tributária é acertada na medida em que se alinha com a prática internacional ao qualificar corretamente estes rendimentos nos dispositivos da Convenção-Modelo. Além disso, o referido Parecer corrige uma premissa até então adotada pela Fazenda de que a legislação interna posterior tem prevalência sobre os Tratados Internacionais.

Estas mudanças de posicionamento presentes no Parecer em comento, se forem seguidas e adotadas pela fiscalização, além de contribuir para a evolução da prática do Direito Tributário Internacional no Brasil, certamente reduzirão os problemas de dupla-tributação, evitando, ainda, eventuais situações de embate com outros países com os quais o Brasil tenha firmado Acordo como é agora o caso da Finlândia e como foi, no passado, com a Alemanha, país que denunciou o Tratado justamente por conta da problemática abordada neste estudo.



[1] Neste sentido, temos o Ato Declaratório Cosit nº. 1/2000.

[2]  A Convenção-modelo da OCDE sobre dupla-tributação é utilizada como base para a celebração da maior parte dos tratados internacionais celebrados entre os Estados. O Brasil, embora não seja membro desta organização internacional, também se pauta neste modelo para firmar seus tratados.

[3] Model Tax Convention on Income and Capital. Condensed Version. 22 de julho de 2010. Item 71, p. 149

[4]  Ressalva-se, no entanto, os casos de rendimentos que têm qualificação expressamente prevista nos artigos dos Tratados, tais como: rendimentos de bens imobiliários, navegação marítima e aérea, empresas associadas, dividendos, juros, royalties, alienação de bens, profissões independentes, profissões dependentes, remunerações de direção, artistas e desportistas, pensões e anuidades, pagamentos governamentais e estudantes.

[5] TORRES, Heleno. Pluritributacão Internacional sobre a Renda das Empresas: Tratamento unilateral, bilateral e comunitário. São Paulo: RT, 1997, p. 401.

[6]VOGEL, 1996, p. 121, apud SCHOUERI, Luis Eduardo. Tratados e Convenções Internacionais sobre Tributação. Direito Tributário Atual,São Paulo: Dialética, n. 17, 2003, p. 35.