International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Ilegalidade da Penhora de Dividendos – Bens de Terceiros

por Rafael Capanema Petrocchi
Pós-graduado em Direito Tributário pela FGV
Advogado no Rio de Janeiro
Vinicius Duarte Moraes
Master in Law – Direito Corporativo pelo Ibmec/RJ
Advogado no Rio de Janeiro

 

I. Introdução

A penhora de dividendos já deliberados, porém ainda não distribuídos aos acionistas, tem se tornado cada vez mais comum, especialmente em execuções fiscais de créditos tributários federais, contando com respaldo inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Cite-se, como exemplo, o julgamento do Recurso Especial n. 1.163.553/RJ (Redator para o acórdão Ministro Herman Benjamin, DJe 01/09/2011), no qual a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deferiu o pedido da Fazenda Pública de substituição de carta de fiança por penhora sobre dividendos deliberados. Entendeu a 2ª Turma que a deliberação de dividendos seria sinal de que há disponibilidade em caixa, a qual deve servir como garantia do crédito tributário executado, em detrimento do direito do acionista, uma vez que o dinheiro é bem de primeira preferência de acordo com o art. 11, da Lei de Execuções Fiscais – LEF (Lei n. 6.830/80) e com o art. 655, do Código de Processo Civil.

Todo o raciocínio desenvolvido no acórdão está apoiado na comparação entre fiança bancária e “dinheiro”, sem se tecer considerações específicas sobre dividendos. Concluindo pela preferência do dinheiro à carta de fiança, o acórdão se concentra na prerrogativa da Fazenda Pública de requerer, a qualquer tempo, a substituição da garantia por outra que, a seu juízo, melhor atenda às expectativas de satisfação do crédito tributário (art. 15, II, da LEF).

Talvez a 2ª Turma do STJ tenha adotado essa posição em razão dos dividendos ainda estarem pendentes do efetivo pagamento, embora já definitivamente deliberados pelo órgão competente da companhia, como se pode depreender em alguns trechos dos votos.

A discussão sobre a substituição de garantia pela penhora de dividendos está afetada à Primeira Seção do STJ por meio dos Embargos de Divergência em REsp nº 1.163.553/RJ (não representativo da controvérsia), cujo julgamento se iniciou em 28/05/2014, com voto do Ministro Relator Arnaldo Esteves Lima pelo provimento dos embargos. O julgamento, entretanto, foi suspenso por pedido de vista do Ministro Herman Benjamin.

No entanto, há uma questão jurídica que não tem recebido a atenção devida, e que pode revelar um equívoco nos fundamentos adotados nas decisões e se mostrar um obstáculo legal à constrição forçadas de dividendos já deliberados.

Conforme demonstraremos a seguir, para a majoritária e mais balizada doutrina societária os dividendos já deliberados não mais integram o patrimônio da sociedade que os paga, compondo, em verdade, o patrimônio dos acionistas, o que afastaria a possibilidade de penhorá-los.

 II. Titularidade jurídica dos dividendos

Primeiramente, é importante atentar à origem dos dividendos; conforme preceitua o art. 201 da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações - LSA) “a companhia somente pode pagar dividendos à conta de lucro líquido do exercício, de lucros acumulados e de reserva de lucros; e à conta de reserva de capital, no caso das ações preferenciais de que trata o § 5º do artigo 17”.

O parágrafo 1° do mesmo artigo prevê que a distribuição com inobservância do referido dispositivo legal implica em responsabilidade subsidiária dos administradores, sem prejuízo de ação penal que no caso couber, ou seja, mesmo no caso de distribuição irregular, os acionistas que tenham recebido os dividendos de boa-fé não estão obrigados a restituí-los (parágrafo 2º, do art. 201). Isso decorre da finalidade lucrativa inerente a todas as sociedades empresárias, conforme preceitua o art. 981 do Código Civil (CC), o que não pode ser visto como meio obscuro de esvaziamento de patrimônio social.

Colaborando com esse entendimento, o art. 202 da LSA prevê a obrigatoriedade do pagamento de dividendos mínimos obrigatórios aos acionistas. Da mesma forma, o art. 109, inciso I, da LSA prevê a participação nos lucros da companhia como um direito essencial do acionista.

Quanto à deliberação e aprovação da divisão dos lucros da uma companhia, o art. 132, incisos I e II, da LSA, prevê que é competência da Assembléia Geral Ordinária (AGO) tomar as contas dos administradores, examinar, discutir e votar as demonstrações financeiras; e deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício e distribuição de dividendos. Este procedimento é realizado levando em consideração as manifestações do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, este último se instalado.

Ultrapassada essa questão, se faz fundamental verificar quando e como nasce o direito do acionista ao dividendo, e quais as obrigações da companhia quanto ao pagamento desses lucros e dividendos.

De acordo com Nelson Eizirik, o direito ao dividendo constitui um direito expectativo, não uma mera expectativa de direito, ou seja, já integra o universo jurídico, da mesma forma que ocorre com o direito de preferência à subscrição de novas ações. Havendo lucro fixado pelo balanço e determinando a assembléia geral ordinária o ‘quantum’ e a maneira de sua distribuição, caso os estatutos já não o tenham feito, deixa de haver direito expectativo para nascer direito expectado ao dividendo, passando o acionista à posição de credor da companhia”[1]. Esse é o mesmo entendimento que já constava das obras de Luiz Gastão Paes de Barros Leães[2] e Pontes de Miranda[3] e recentemente foi corroborado por José Walcedy Lucena[4], em seu livro “Das Sociedades Anônimas”, onde diferencia claramente a mera expectativa de direito, do direito expectativo e do direito expectado.

Esse entendimento é partilhado, ainda, pelo Desembargador Luciano Tolentino Amaral[5], do TRF da 1ª Região, para quem aprovada a distribuição de dividendos aos acionistas, eles passam a pertencer a esses (terceiros estranhos), o que tornaria ilegal o postulado gravame.”

Como podemos ver, a doutrina é firme no sentido de que o dividendo, mesmo antes de deliberada e aprovada a sua distribuição, é direito integrante do patrimônio jurídico do acionista (direito expectativo), e não mera expectativa de direito. Muito menos haverá dúvida após a aprovação das contas da sociedade e da distribuição dos dividendos em assembléia geral ordinária específica, ocasião em que o direito expectativo se torna direito expectado.

Vale lembrar que, tão logo deliberados, os dividendos são contabilizados como passivo (não contingente) da companhia pagadora, o que corrobora a afirmação de que os dividendos são bens de terceiros e não patrimônio da sociedade. Ou seja, eventual penhora de dividendos a serem distribuídos estará a recair sobre o passivo da companhia, e não sobre bens ou direitos do ativo.

IV. Bens passíveis de penhora

Demonstrada a titularidade jurídica dos dividendos já deliberados, resta analisar as regras que tratam da garantia de créditos tributários em processos de execução fiscal, para, então, concluir acerca da legalidade ou não de a penhora recair sobre eles.

Como é sabido, a garantia nos processos de execução fiscal pode ser levada a efeito pelo oferecimento espontâneo de bem pelo executado (art. 9º, da LEF) ou mediante a constrição forçada de bens (art. 11, da LEF).

O art. 9º, da LEF, que regula o oferecimento espontâneo de bens pelo devedor, autoriza a indicação de bens de terceiros, desde que haja anuência do proprietário. Por outro lado, o art. 11, da LEF, que se assemelha ao art. 655, do CPC, trata da constrição forçada de patrimônio do devedor, caso o executado não ofereça espontaneamente alguma garantia no prazo legal, não havendo previsão, por razões óbvias, para penhora forçada de bens de terceiros alheios ao feito.

É verdade que o art. 15, II, da LEF, confere à Fazenda Pública a prerrogativa de requerer a substituição da penhora. Todavia, considerando que nessa hipótese o bem a sofrer a constrição judicial não é indicado espontaneamente pelo executado, deve-se seguir o disposto no art. 11, da LEF, o qual não prevê a possibilidade de a penhora recair sobre bens de terceiros.

Em suma, verifica-se que bens de terceiro somente podem servir de garantia em execução fiscal quando oferecidos espontaneamente pelo executado, com a anuência do terceiro-proprietário, mas jamais podem ser alvo de penhora forçada a pedido da Fazenda Pública, haja vista a inexistência de previsão legal para tanto.

V. Lei 4.357/64, Art. 32

Não se pode negligenciar que o art. 32, da Lei n. 4.357/64, veda a distribuição de bônus ou de participação nos lucros por companhias com débito não garantido para com a Fazenda Pública, sob pena de multa.

A despeito dessa vedação, não nos parece que tal regra autorizaria a penhora de dividendos, nem mesmo como consequência indireta da norma, como forma de impedir a sua distribuição. A única consequência jurídica prevista pela norma é a aplicação de multa, não havendo sequer nulidade da deliberação da assembleia pela distribuição dos dividendos, em razão do que dispõe o art. 166, VII, do Código Civil, c/c com o citado art. 32, que impõe sanção específica para seu descumprimento.

A inexistência de nulidade da distribuição de dividendos mesmo diante da ofensa ao art. 32, da Lei n. 4.357/64, pode ser corroborada pelo julgamento do REsp nº 1.115.136/SC (27/03/2012), ainda que a questão de fundo desse caso não seja idêntica à presente.

Adicione-se, ainda, o fato de que os passivos fiscais, quando necessário, devem ser objeto de provisão contábil, o que reduz o lucro a ser distribuído, sendo inadequado sustentar, de forma genérica, que a companhia estaria distribuindo recursos que deveriam ser utilizados para pagamento da obrigação tributária. Caso se verifique que a distribuição dos dividendos foi realizada de forma irregular ou fraudulenta e/ou que a companhia não tem condições de proporcionar qualquer outra garantia idônea, então caberia a anulação da deliberação que decidiu pela distribuição dos dividendos, conforme estabelecem os arts. 134, § 3º, e 286, da Lei das S/A.

Em suma, a distribuição de dividendos por companhias com débito não garantido para com a Fazenda Pública pode dar causa à aplicação da multa prevista no art. 32, da Lei n. 4.357/64, ou, em caso de fraude, à anulação da deliberação, mas jamais pode dar ensejo à penhora sobre tais dividendos, uma vez que essa consequência não emerge das normas pertinentes.

VI. Conclusão

Diante das reflexões acima, não nos parece haver previsão legal que autorize a penhora forçada de dividendos já deliberados, haja vista que, deliberada a distribuição dos dividendos, o respectivo montante deixa de integrar o patrimônio jurídico da companhia, passando à titularidade dos acionistas, de forma que, eventual penhora sobre esse numerário consistirá em constrição judicial de bens de terceiros, o que não encontra apoio no art. 11, da LEF, e no art. 655, do CPC, nem tampouco no art. 32, da Lei n. 4.357/64, cuja desobediência ensejará, exclusivamente, a aplicação de multa.

A questão ora proposta foi arguida pelo Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, do TRF da 1ª Região, em decisão monocrática proferida no Agravo de Instrumento nº 2008.01.00.047488-8/BA. Porém, submetido o caso ao STJ, a Corte não adentrou nesse mérito, ao argumento de que a matéria não havia sido objeto do recurso (REsp nº 1.201.045, Relator Ministro Benedito Gonçalves). O mesmo Desembargador Federal trouxe novamente esse ponto no Agravo de Instrumento nº 2009.01.00.019608-8/DF, o qual deu origem ao REsp 1.208.453, ainda pendente de julgamento pelo STJ.

Fato é que, em todos os casos analisados, o STJ tem se amparado exclusivamente na LEF e no CPC, sem enfrentar a natureza dos dividendos e a sua titularidade, questões que, a nosso ver, revelariam a ilegalidade da penhora de dividendos. Esperamos que essa questão seja submetida ao crivo do STJ, para que a jurisprudência se firme em bases jurídicas sólidas e de forma coerente com a legislação e com a doutrina societárias.



[1] NELSON EIZIRIK. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: 2011, p. 125.

[2] LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES. Estudos e Pareceres sobre Sociedades Anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 114.

[3] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t. V, 4ª edição, São Paulo: 1983, p. 264.

[4] JOSÉ WALDECY LUCENA. Das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: 2012, p. 127.

[5]Decisão monocrática proferida em 07/04/2009, no Agravo de Instrumento nº 2009.01.00.019608-8/DF