International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Tributação na contratação de equipamentos pela indústria do petróleo

por Leonardo Homsy 
Advogado
sócio do Campos Mello Advogados
Fernanda Junqueira Bastos
advogada
associada do Campos Mello Advogados

 

A tributação na contratação de equipamentos (navios, sondas e plataformas) pela indústria do petróleo vem sendo objeto de controvérsias, ilustradas por autuações fiscais em montantes geralmente expressivos e que têm causado bastante insegurança às empresas que atuam no seguimento.

Como se sabe, os equipamentos de grande porte utilizados pela indústria do petróleo são normalmente importados sob o âmbito do regime aduaneiro especial de exportação e importação de bens destinados às atividades de pesquisa e de lavra das jazidas de petróleo e de gás natural (Repetro), com suspensão total dos tributos federais normalmente incidentes sobre a importação (II, IPI, PIS/COFINS-Importação e AFRMM), atualmente nos termos da Instrução Normativa RFB nº 1.415/2013, e com o tratamento diferenciado de ICMS previsto no Convenio ICMS nº 130/2007.[1]

Via de regra, a importação dos bens costuma ser lastreada em contratos de aluguel, arrendamento ou afretamento, com remessas periódicas de remuneração ao exterior. Em paralelo, são contratadas empresas nacionais para a prestação dos serviços de prospecção, perfuração, avaliação, completação, etc., executados mediante operação dos equipamentos importados. Ambas as transações têm sido alvo de questionamentos por parte da Receita Federal.

Com efeito, operadoras têm sido autuadas em relação às remessas realizadas em contraprestação ao afretamento, arrendamento ou locação dos bens, notadamente embarcações, ao passo que as suas contratadas têm sido autuadas, em geral, por suposta omissão de receitas.

Na prática, a Receita Federal se insurge contra a estrutura contratual largamente adotada pela indústria, caracterizada pela existência de (i) um contrato de aluguel, arrendamento ou afretamento do bem, firmado entre operadora e a pessoa jurídica não-residente, proprietária do bem, e (ii) um contrato de prestação de serviços firmado entre a operadora e uma pessoa jurídica residente, que não raro é parte relacionada da proprietária estrangeira.

A posição que vem sendo adotada pelas autoridades fiscais é a de que o modelo contratual acima descrito caracteriza repartição artificial de uma única relação jurídica de prestação de serviços, uma vez que a proprietária do bem e sua parte relacionada no Brasil atuam em conjunto, de forma interdependente e com responsabilidade solidária perante a operadora contratante.

Em se tratando de autuações lavradas contra operadoras em função dessa estrutura, o caso mais emblemático consiste na autuação de CIDE sofrida pela Petrobras no ano de 2012, objeto do processo administrativo nº 16682.721162/2012-35, recentemente julgado pelo CARF (acórdão nº 340-002.702, de 29 de janeiro de 2014, ainda sujeito à apreciação da Câmara Superior de Recursos Fiscais). No caso, o CARF decidiu que o fornecimento dos equipamentos (navios-sonda, plataformas semissubmersíveis, navios de apoio à estimulação de poços e unidades flutuantes de produção, armazenamento e transferência) é parte integrante e indissociável dos serviços contratados localmente, tendo natureza meramente instrumental, razão pela qual os pagamentos efetuados ao amparo dos contratos ditos de afretamento sujeitam-se à CIDE.

Sob outro prisma, o Fisco tem se insurgido contra o fato de as empresas que prestam serviços de prospecção, perfuração, avaliação, etc. para as operadoras serem geralmente deficitárias, reportando constantes prejuízos, embora permaneçam operacionais e adimplentes com suas obrigações em geral, e estejam inseridas em um contexto em que seria de se presumir expectativa de lucratividade da atividade. No entender das autoridades fiscais, a receita da operação estaria basicamente sendo desviada ao exterior em virtude da concentração da maior parte da remuneração paga pelas operadoras no contrato de afretamento, gozando, no caso de embarcações especificamente, do benefício da alíquota zero do imposto de renda retido na fonte (IRRF) previsto no inciso I do artigo 1º da Lei nº 9.487/1997 por ocasião das remessas.

Houve casos recentes em que, após expor o contexto fático e contratual, a Fiscalização arguiu que as transferências financeiras recebidas do exterior a título de empréstimos e aumentos de capital seriam, na realidade, subvenções da controladora estrangeira às prestadoras de serviço, que têm natureza de custeio e constituem receita operacional tributável. São ainda mais comuns os casos em que a Fiscalização glosa despesas incorridas pela prestadora do serviço, alegando tratar-se de custo da proprietária dos bens, ou descaracteriza reembolsos de despesa recebidos do exterior, considerando os valores recebidos como receitas decorrentes de uma relação de serviços entre as contratadas.[2]

A nosso ver, não há qualquer ilegalidade na estrutura contratual que vem sendo adotada pela indústria, entendimento esse que foi recentemente corroborado pela Receita Federal através da recente Solução de Consulta Cosit nº 225, de 19 de agosto de 2014, onde ficou consignado que “em princípio não se vislumbra nenhum óbice que, na gestão de seus negócios, determinada empresa opte por efetuar dois contratos com empresas distintas, uma para afretamento do bem e a outra para sua operação”.

Contudo, merece nota o trecho seguinte da decisão, onde se ponderou que “a vinculação entre as empresas responsáveis pelo afretamento e pela sua operação poderia configurar, quando associada a outros aspectos, tais como a desproporção da remuneração pactuada e ausência de propósito negocial, um planejamento fiscal abusivo com a consequente descaracterização do negócio por parte do fisco.”

A grande questão que se coloca é que a Fiscalização vem lavrando autos de infração com base em meras presunções desprovidas de respaldo legal.

Ora, a alegada manipulação quanto ao preço atribuído a cada contrato não se comprova simplesmente pelo fato de haver uma aparente desproporção entre os valores contratuais, porque se paga mais pelo afretamento/aluguel do bem ao proprietário estrangeiro do que se paga pela prestação do serviço à contratada brasileira. Isso porque, na medida em que o escopo desses contratos é completamente diferente, os preços são incomparáveis. O valor previsto no contrato de afretamento/aluguel somente poderia ser comparado ao valor previsto em outros contratos de afretamento/aluguel de bens idênticos ou similares, ao passo que o valor previsto nos contratos de prestação de serviço somente seria comparável àquele previsto em outros contratos com o mesmo objeto. Ausente a demonstração de que os valores atribuídos ao afretamento/aluguel não observam as condições de mercado, não se poderia concluir que os valores devidos pela prestação dos serviços estariam sendo dissimuladamente remetidos ao exterior.

A verdade é que, na prática, a Fiscalização não se desincumbe do dever de prova dos fatos alegados, pautando os autos de infração em meras presunções, sem apontar qual seria a alocação da remuneração razoável para cada contrato e porquê. Com efeito, para que  pudesse concluir pela artificialidade dos valores atribuídos aos contratos de afretamento e de serviços, supostamente decorrente da relação existente entre as empresas contratadas, seria imprescindível que a Fiscalização apresentasse provas dessa alegada artificialidade, com bases nos preços praticados no Brasil e/ou no exterior em cada um desses tipos de contrato.

Outro aspecto que merece nota é que, ao assim proceder, a Receita Federal acaba exigindo tributos de contribuintes diferentes, sobre uma mesma receita. Isso porque a Receita Federal pretender tributar os pagamentos remetidos ao exterior em contraprestação do afretamento como se fossem serviço e, ao mesmo tempo, tributar as prestadoras de serviço nacionais por deixarem de reconhecer como receita tributável parte desses mesmos valores.

Registre-se que a atuação da Receita Federal vai de encontro aos esforços do Governo Federal para fomentar a indústria, e parece desconsiderar a circunstância de que a contratação da empresa estrangeira para a disponibilização dos equipamentos é fomentada pela própria legislação fiscal no contexto desses esforços.

Nota-se que sempre houve, por parte do Governo Federal, preocupação em criar mecanismos para incentivar a importação dos equipamentos necessários ao desenvolvimento das atividades de pesquisa e lavra de petróleo e gás, mediante desoneração dos tributos incidentes no desembaraço aduaneiro dos bens, o que foi realizado a partir do Repetro, um regime que só funciona quando a contratação envolve empresa constituída no exterior, ainda de que capital nacional. Com efeito, o Repetro possibilita que empresas nacionais importem insumos com suspensão de tributos no âmbito do Drawback, barateando o custo de fabricação dos bens, e admite a exportação ficta do bem final para pessoa jurídica estrangeira (com aplicação do tratamento fiscal aplicável às exportações em geral), com subsequente admissão no Repetro, tornando essencial ao processo a presença de uma empresa constituída no exterior para deter a propriedade dos bens.  

A legislação do Repetro editada pela Receita Federal chegou a regular expressamente o modelo de contratação ora atacado por seus auditores. Com efeito, na vigência da Instrução Normativa RFB nº 844/2008, com a redação dada pela Instrução Normativa RFB nº 1.089/2010, o § 9º do artigo 17 previa que, na hipótese de disponibilização de bem pela concessionária ou autorizada à empresa contratada para a prestação de serviços, seria aceito, para fins de concessão do regime de admissão temporária, contrato de afretamento a casco nu, de arrendamento operacional, de aluguel ou de empréstimo, firmado entre a concessionária ou autorizada e a empresa estrangeira, desde que estivesse vinculado à execução de contrato de prestação de serviços e contivesse cláusula prevendo a transferência da guarda e da posse do bem à empresa contratada para a prestação de serviços.

Mais recentemente, ao editar a Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014, o Governo Federal deu ainda tratamento diferenciado à parcela dos lucros apurados no exterior, através de controladas diretas ou indiretas, que correspondam às atividade de afretamento por tempo ou casco nu, arrendamento mercantil operacional, aluguel, empréstimo de bens ou prestação de serviços diretamente relacionados à prospecção e exploração de petróleo e gás, em território brasileiro. Nos termos da nova lei, esta parcela não será computada na determinação do lucro real e na base de cálculo da CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil, quando esta seja operadora ou empresa contratada por operadora.

Ou seja, há todo um arcabouço legislativo próprio da indústria com evidente intuito ao seu fomento.

Por fim, cumpre observar que a indústria vem sofrendo autuações correlatas que não decorrem do modelo contratual em si, mas que contribuem para aumentar a insegurança do setor quanto aos impactos fiscais das contratações.

É o caso das autuações em que se discute o enquadramento de determinados bens no conceito de embarcação marítima, para fins de aplicação da alíquota zero do imposto de renda retido na fonte (IRRF) prevista no inciso I do artigo 1º da Lei nº 9.487/1997. Embora a controvérsia tenha inicialmente se referido às plataformas, navios de pesquisa também já foram alvo de questionamento, com decisões conflitantes já exaradas pelas Delegacias da Receita Federal de Julgamento.[3] Outro exemplo são as autuações para exigência de CIDE nas remessas da contraprestação do afretamento, sob o argumento de que se trata de contrato complexo, que envolve a prestação de serviços técnicos[4].

Diante de tudo quanto exposto, é evidente o descompasso entre os esforços do Governo Federal e a atuação da Receita Federal, que vem atacando a indústria por vários ângulos, gerando grande insegurança quanto aos impactos tributários das contratações e ao risco de materialização de contingências significativas.



[1] Vale notar que, em acórdão ainda não publicado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria de votos,  que o ICMS não incide sobre operações de importação feitas por meio de arrendamento mercantil (leasing). Segundo noticiado na página eletrônica do STF, a decisão foi proferida no Recurso Extraordinário nº 540.829, com repercussão geral reconhecida, durante a sessão plenária realizada em 11.09.2014, tendo sido definido que, mesmo na importação, o ICMS só incide quanto ocorre a transferência da titularidade do bem (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=274967).

 

 

[2]Vide por exemplo acórdãos CARF 1402-001.595, de 2014;  1202-001.067, de 2013; e 1402-001.439, de 2013.

[3]Acórdãos DRJ 12-84143, de 2012, e 12-62150, de 2013.

[4]Acórdãos DRJ 12-62151, de 2013, e 12-48145, de 2012.