Da (in)tributabilidade de incorporações imobiliárias pelo Imposto sobre Serviços

por Flávio de Souza Valentim
Mestre em Direito Tributário pela PUC-MG.
Professor de Direito Tributário de graduação e pós-graduação da PUC-MG.
Advogado e sócio do escritório Bernardes & Advogados Associados
Pedro Henrique Garzon Ribas
Consultor tributário do escritório Bernardes & Advogados Associados
Coordenador da Associação Brasileira de Direito Tributário Jovem – ABRADT Jovem

 

Legalmente definida como a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou o conjunto delas compostas de unidades autônomas[1], as incorporações imobiliárias se revelam atualmente como tema de grande debate envolvendo contribuintes incorporadores e os órgãos fazendários, sobretudo os de âmbito municipal. Antes de adentrar, contudo, na questão envolvendo a tributação pelo Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN – de operações envolvendo incorporações imobiliárias, faz-se necessário tecer breves apontamentos preliminares de forma a delimitar o escopo de análise do presente trabalho.

Inicialmente, tem-se que o contrato de incorporação imobiliária se revela como gênero, do qual a incorporação por empreitada, por administração e por contratação direta são espécies. Na primeira, o incorporador assume a realização do empreendimento em face dos adquirentes, edificando a obra, em terreno alheio, mediante a contratação de terceiro responsável pela execução do serviço. Por sua vez, na incorporação por administração, também denominada de “preço de custo”, o incorporador é contratado para a administração da obra, também executada em terreno de terceiro, a qual necessariamente será realizada por uma empreiteira. Assim, dispõe o art. 58 da Lei n. 4.591/1964 que na incorporação por administração será firmado um contrato entre os adquirentes, organizados sob o regime condominial, e a empreiteira responsável pela obra. Por fim, na incorporação imobiliária direta, o incorporador, em terreno próprio e por sua conta e risco, realiza a venda das unidades autônomas por um “preço global”, que compreenderá a compra da quota do terreno e construção.

Tecidos as devidas diferenciações em relação aos três tipos de incorporação imobiliária apresentados pela Lei n. 4.591/1964, cumpre realizar adiante algumas considerações acerca da materialidade do ISS que justifique todo o impasse por ele gerado entre os fiscos municipais e os incorporadores.

De acordo com Aires F. Barreto, a hipótese de incidência do ISS é a prestação de serviço, não compreendido na competência tributária dos Estados (art. 155, II), com conteúdo econômico, de caráter habitual, sob regime de direito privado, mas sem subordinação, tendente a produzir uma utilidade material e imaterial[2]. Descrevendo de forma taxativa quais seriam os serviços passíveis de tributação pelo ISS, que a lista anexa à Lei Complementar n. 116/2003 regulamentou em seu item 7.02 que constituiria fato gerador do imposto:

 7.02 – Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras semelhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenagem e irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação e montagem de produtos, peças e equipamentos (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS). 

 Apesar do Supremo Tribunal Federal ter o entendimento consolidado de que a despeito de sua taxatividade, a lista anexa de serviços deve ser interpretada de forma ampliativa, questiona-se: sobre quais serviços de construção civil deve incidir o ISS? Indubitavelmente, a resposta deve se ater aos únicos três regimes de construção civil trazidos pelo item 7.02, são eles, o regime de administração, empreitada ou subempreitada. Ora, interpretar ampliativamente não pode nem deve significar extrair da norma tributária, por analogia ou outro mecanismo integrativo qualquer, conteúdo diverso não aplicável originariamente ao fato, sob pena de se ferir a estrita legalidade e o princípio fundamental da segurança jurídica que deve reger a relação Estado-contribuinte.

Visando a fazer uma leitura sistemática de tudo aquilo até aqui já exposto é que se torna possível afirmar com certa clareza a submissão à tributação pelo ISS das incorporações imobiliárias regidas tanto na modalidade por empreitada, quanto naquela por administração. Nestas, o incorporador ou o condomínio de adquirentes celebra um verdadeiro e inquestionável contrato de prestação de serviços para a consecução da construção desejada. Em outras palavras, faz-se possível vislumbrar nestes tipos de incorporação o encerramento de dois negócios jurídicos bilaterais distintos, um de compra e venda das unidades autônomas pelos adquirentes e outro pela contratação de terceiros para a execução da construção, sujeitando, portanto, o preço pago pelos serviços à tributação pelo ISS de competência municipal.

Lado outro, assim não se deve conceber a operação efetivada na chamada incorporação imobiliária direta. Nesta, conforme visto acima, o incorporador assume perante os adquirentes das unidades autônomas de seu empreendimento uma mera obrigação de “dar coisa certa”, ou seja, de entregar pronta a quota imobiliária por aqueles adquiridas. A construção, ou a obra, se revela nesse contexto, portanto, como mera atividade-meio, ou seja, o facere envolvido existe apenas como uma forma de implementação do próprio contrato de compra e venda celebrado.

 As lições da doutrina são precisas sobre o tema.

 Marcelo Caron Baptista afirma em sua obra que todo contrato visa a um fim específico. É um dos meios pelos quais o homem busca a satisfação de suas necessidades, relacionando-se com terceiros. Exatamente da finalidade do contrato é que se extrai a natureza da prestação[3].

Tomando por base dado raciocínio, esclarece-se que a tributação do ISS não recai – e nem visa a recair – sobre aquelas ações prestadas a terceiros como requisito ou condição de um “fazer”, mas sim naquelas ações prestadas à terceiros como o próprio fim ou objeto. Nesse sentido, vai além Marcelo Caron Baptista arguindo que:

 Sempre que o intérprete conhecer o fim do contrato, ou seja, descobrir aquilo que denominamos de “prestação-fim”, saberá ele que todos os demais atos relacionados a tal comportamento são apenas “prestações-meio” da sua realização.
Independe, para que um ato do devedor seja tido como prestação-meio, tratar-se de um fazer ou de um dar. O elemento decisivo está na prestação-fim, que definirá se há ou não incidência do ISS.”[4] 

Propõe-se, por oportuno, a análise de forma extensiva à realidade da incorporação imobiliária direta até então apresentada, da situação na qual a venda da unidade autônoma pelo incorporador seja feita de maneira antecedente ao término da obra, como nos casos das chamadas “vendas na planta”, ou então em momento imediatamente anterior à sua finalização, antes da outorga do “habite-se” pelo órgão municipal competente. Nessas hipóteses, alegam as fazendas municipais estar-se diante da situação em que o incorporador não mais atua em terreno próprio, desempenhando a obra em quota de terreno alheio, configurando dada situação, senão própria, mas analogamente, uma prestação de serviço tributável pelo ISS, especificamente com fulcro no item 7.02 supra destacado.

Em outras palavras, o que pretendem os fiscos municipais efetivamente é configurar o encerramento da relação primeiramente estabelecida entre incorporador e adquirente, no momento em que este encerra a compra da unidade autônoma imobiliária perante aquele. A partir daí, a concretização da obra se caracterizaria como verdadeira relação de prestação de serviços, tendo o adquirente como o seu tomador e o incorporador como prestador. Dada inteligência, contudo, não merece prosperar.

Primeiramente, ainda que a venda seja realizada antes que a obra esteja acabada, a operação de alienação na incorporação imobiliária direta não pode ser tida como transmutada, de forma que não se revela razoável conceber a bipartição do contrato firmado em uma promessa de compra e venda e uma empreitada de obra. Não obstante, a venda de coisa para entrega futura não desnatura o negócio realizado na incorporação, não transferindo, portanto, aos adquirentes a condição de incorporadores e nem modifica o negócio eminentemente imobiliário firmado entre as partes em contratação da construção por empreitada ou administração.

Nesse sentido, repisa-se no fato de que os contratos envolvendo incorporações imobiliárias diretas geram apenas uma mera obrigação de dar, não havendo que se falar em obrigação de fazer (prestar serviços) deles decorrentes. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, bem como, já assentou entendimento apontando que nos contratos de compra e venda como os ora debatidos, a finalidade, ou a obrigação envolvida é a de entrega, pelo incorporador, das unidades, configurando a construção como mero serviço-meio para se atingir o objetivo final. Veja-se:

 “TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ISSQN. INCORPORAÇÃO DIRETA. TRIBUTO INDEVIDO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. Segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, "não cabe a incidência de ISSQN na incorporação direta, já que o alvo desse imposto é atividade humana prestada em favor de terceiros como fim ou objeto; tributa-se o serviço-fim, nunca o serviço-meio, realizado para alcançar determinada finalidade. As etapas intermediárias são realizadas em benefício do próprio prestador, para que atinja o objetivo final, não podendo, assim, ser tidas como fatos geradores da exação" (REsp 1.166.039/RN, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Segunda Turma, DJe 11/06/10).

2.  Agravo regimental não provido.”

(AgRg no REsp 1356977/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, DJe 25.03.2013) (grifamos)

 Face todo o apresentado, conclui-se que as únicas operações envolvendo incorporações imobiliárias que poderão ser alvo da tributação pelo ISS serão aquelas envolvendo incorporações por empreitadas e incorporações por administração, tendo em vista que nestas o incorporador ou o condomínio de adquirentes celebra um incontestável contrato de prestação de serviços para a consecução da construção desejada com terceiros.

Todavia, na contramão dessa lógica, não há que se cogitar a incidência do ISS sobre contratos envolvendo incorporações imobiliárias diretas, ainda que a operação de alienação das unidades autônomas se concretize em momento anterior à entrega da obra, tendo em vista que nestes casos os serviços de construção afeiçoar-se-ão como mera atividade-meio para a concretização do escopo fim do contrato que é de entregar coisa certa, encerrando verdadeira obrigação de dar, a qual foge da materialidade do comente imposto municipal.

 

Bibliografia utilizada: 

BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. / Marcelo Caron Baptista. – São Paulo: Quartier Latin, 2005.

 BARRETO, Aires F., Curso de direito tributário municipal / Aires F. Barreto. – São Paulo : Saraiva, 2009.



[1] Art. 28, parágrafo único, da Lei n. 4.591/1964

[2] BARRETO, Aires F., Curso de direito tributário municipal / Aires F. Barreto. – São Paulo : Saraiva, 2009. p. 319

[3] BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. / Marcelo Caron Baptista. – São Paulo: Quartier Latin, 2005. p.283.

[4] BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma. / Marcelo Caron Baptista. – São Paulo: Quartier Latin, 2005. p.286.