Seletividade para o ICMS e a Tributação da Energia Elétrica

por Renato Moreira Trindade
Advogado
Sócio de Mello Alves & Trindade Advogados
Especializado em direito tributário
Graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
Pós-graduado em direito empresarial, com concentração em tributário pela FGV
Graduando em ciências contábeis pela Trevisan
Pesquisador dos cursos de pós-graduação em direito tributário e de processo tributário da FGV

 

1. Introdução

De acordo com o inciso III, do parágrafo 2º, do artigo 155, da Constituição Federal de 1988, o Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”.

A aplicação desta regra constitucional tem ensejado diversas discussões que vão desde a gradação da força impositiva do dispositivo, até a sua aplicação casuística em relação a determinados produtos.

No caso em exame, trata-se da aplicação da regra da seletividade do ICMS versus a onerosidade da tributação da energia elétrica. Utilizar-se-á, para se ter um parâmetro, o caso do Rio de Janeiro, onde a alíquota nominal do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica para consumo mensal superior a 300 quilowatts/hora é de 25% (cf. inciso VI, item 2, do art. 14 do Decreto estadual nº 27.427/00), desconsiderado o FECP[1], e onde o debate está bem posto em juízo.

2. Seletividade em função da essencialidade. O caso da energia elétrica

Antes de adentrar o tema central deste trabalho, cabe fazer uma breve digressão ao delineamento peculiar do tributo. Dentre as várias hipóteses de incidência embutidas no ICMS, a de maior relevância econômica é aquela que onera a circulação de mercadorias, fato que vincula os produtores e comerciantes ao consumidor final, via negócio jurídico que culmina com a transferência de titularidade do bem posto em circulação. Por onerar diretamente o consumo, pode-se afirmar que o ICMS tem potencial extrafiscal, influenciando a formação de preços e, por via de consequência, as escolhas finais dos consumidores e o próprio direcionamento dos mercados e modelos de produção. O imposto exerce relevante papel no cotidiano das pessoas, colaborando mesmo na definição quanto a “o que”, “quanto” e “em quais ocasiões” consumir (este ou aquele produto), estimulando certas substituições e, até mesmo, abstenções de consumo.

Esta extrafiscalidade, esta carga política natural do ICMS, ao passo em que entrega excessivo poder ao Estado para intervir na ordem econômica, impõe-lhe, de igual maneira, o dever de ajustar a onerosidade do tributo às necessidades e realidades sociais existentes. Justifica-se esta afirmativa, especialmente, através do princípio da dignidade da pessoa humana, que se espraia pela garantia do mínimo existencial e preside, inclusive, a ordem econômica (artigo 170, da CRFB), e que traz para o ICMS um campo possível (e exigível) de aplicação do princípio da capacidade contributiva. Fazendo coro com Klaus Tipke: “em nossa opinião vale o princípio da capacidade contributiva para todos os impostos, inclusive os impostos indiretos sobre o consumo. [...] O princípio da capacidade contributiva deve como princípio tutelar ser tornado eficaz: também impostos indiretos não devem violar o mínimo para a sobrevivência”[2]. É que o ICMS, na hipótese que aqui importa, embora incida sobre negócios jurídicos de circulação de mercadorias, tem como bem tributável[3] o consumo final, sendo este o signo presuntivo de riqueza (um dos três elegíveis, ao lado da renda e da propriedade) e, assim, comporta uma medição da capacidade contributiva sobre bases econômicas mensuráveis. Tal riqueza tributável, porém, dadas as peculiaridades de tributo indireto, é de muito mais difícil captação na realidade fática, ao passo em que depende de uma análise de sinais indiretos como quantidades de consumo ou características dos produtos consumidos.

Aí está a autorização para uma imposição fiscal mais onerosa sobre bens supérfluos e menor para bens ditos essenciais. A regra da seletividade em razão da essencialidade, embora deva merecer todo o prestígio dedicado às normas constitucionais, vem apenas perfectibilizar e positivar este princípio que se pode dizer inerente ao imposto. O dispositivo em questão, portanto, traz o conteúdo de uma ordem jurídica moral e razoável, justa, para o ICMS. Resta saber quando, como, em qual medida.

Sendo o consumo a referência para ajuste do ICMS à realidade econômica tributável, está no consumidor final o ângulo do dimensionamento do tributo, até porque é ele quem arca, via de regra, com a imposição fiscal integral, através da repercussão financeira do imposto. A medida dos aspectos quantitativos da hipótese de incidência do ICMS deve, assim, ser observada através da lente do consumo, focando nas necessidades dos consumidores para estabelecer a participação de cada produto no fim arrecadatório do ICMS. A imposição fiscal que superar a razoável tributação de cada produto, analisando-se a partir da sua essencialidade, finda por conter viés confiscatório, ao passo em que entrega mais ao Erário que o recomendável sob o ponto de vista da justiça fiscal.

Tais considerações, embora não tenham esta única finalidade, acabam por tornar desnecessárias ponderações acerca da questão semântica que envolve o termo “poderá” no dispositivo sob análise. Não que se desestimule a concentração de argumentos, mas que o espaço reservado nessas laudas não comporta maiores digressões para reafirmar que a seletividade pela essencialidade é decorrência do próprio plexo de valores e princípios que emanam da Ordem Constitucional brasileira, e, nesta linha, reproduzir Roque Antonio Carraza, para quem “quando a Constituição confere a uma pessoa política um ‘poder’, ela ipso facto, está lhe impondo um ‘dever’. [...] pessoas políticas têm poderes-deveres”[4].

Pois bem. O Estado do Rio de Janeiro, ao definir a alíquota incidente sobre a energia elétrica, optou por aplicar as seguintes faixas de incidência, a depender do consumo mensal: (a) consumo até 50 kWh, isento; (b) consumo até 300 kWh, 18%; e (c) consumo superior a esta faixa, 25%. Pretendeu, aparentemente, onerar os maiores consumidores, com espeque naquela lógica do consumo como balizador da capacidade contributiva.

Ocorre que esta aplicação não é tão cartesiana quanto aparenta. A energia elétrica não é um bem de consumo de aplicação isolada, mas é, sim, bem necessário ao funcionamento de uma série de outros, cuja essencialidade comporta gradações distintas em iguais níveis de consumo, o que pode, portanto, refletir capacidades contributivas absolutamente opostas. Não parece que a energia elétrica, embora travestida em mercadoria, possa ter na demanda individual um balizador apto a refletir capacidade contributiva – um hospital, sendo imperioso exemplificar, tem um consumo padrão necessariamente muito superior ao de uma casa de veraneio utilizada apenas algumas poucas vezes ao ano. Não é sempre que a seletividade, enquanto medida de justiça fiscal, poderá se desvincular do tipo do produto para medir a essencialidade. Haverá casos em que o produto, por si, justificará a seletividade.

Retome-se a ideia de que o foco da capacidade contributiva no ICMS é o consumo e que a dignidade que deve ser preservada é a do consumidor final: neste caso, em que medida o índice de 50kWh estaria preservando o mínimo existencial do consumidor e o de 300 kWh demonstraria uma faixa de consumo padrão da sociedade? Conforme dados apresentados pela Empresa de Pesquisa Energética[5], em 2013, o consumo residencial médio mensal de energia elétrica foi de 163 kWh por consumidor. Se a média nacional representa quase metade do suposto índice de corte da extrafiscalidade, a partir do qual passa a ser autorizado desestimular o consumo, se este é o argumento autorizador da distinção, há de se convir que uma quantidade significativa de consumidores com maior capacidade contributiva teria embarcado na “essencialidade” da parcela com menor capacidade contributiva, outros na “linha de normalidade” da alíquota padrão de 18%.

O que se operou foi, sim, uma oneração das parcelas maiores de consumo, a qual afeta, principalmente, a atividade industrial, para quem a energia elétrica é fator de produção extremamente essencial. Ora, ao majorar a alíquota da energia elétrica para grandes consumidores, sem se considerar a efetiva essencialidade do produto, e o seu reflexo na economia, com elevado interesse social, está-se negando a essencialidade e transmutando o ICMS, neste particular, em tributo estritamente fiscal/arrecadatório, logo, pela lógica do tributo: confiscatório.

3. Jurisprudência sobre o tema

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pelo seu Órgão Especial, consolidou o entendimento pela inconstitucionalidade das normas citadas, afirmando que “deve ser maior a alíquota relativa às mercadorias supérfluas e suntuosas, entre as quais não se enquadram os serviços de energia elétrica [...], que, a contrario senso”, é considerado “de essencial importância à sociedade[6]. No entanto, em pedido de Suspensão de Segurança requerido pela Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, o STF determinou a suspensão dos efeitos das decisões de mérito e liminares concedidas no Tribunal de Justiça[7]. No STF foi também reconhecida a repercussão geral da matéria, nos autos do Recurso Extraordinário nº 714139/SC, o qual, ao que parece, balizará a solução da controvérsia. Confia-se, pois, que o Tribunal Constitucional se sensibilizará com tão relevante questão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARRAZA, Roque Antonio. ICMS, 12ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2007.

TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito Tributário (Steuerrecht), tradução da 18ª edição alemã, totalmente refeita, de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.

RESENHA Mensal do Mercado de Energia Elétrica. Empresa de Pesquisa Energética, Rio de Janeiro, Ano VII, Número 76, Janeiro de 2014.



[1] Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais.

[2] TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito Tributário (Steuerrecht), tradução da 18ª edição alemã, totalmente refeita, de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. p. 203.

[3] Veja-se, nesse sentido: TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 111.

[4] CARRAZA, Roque Antonio. ICMS, 12ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 400.

[5] RESENHA Mensal do Mercado de Energia Elétrica. Empresa de Pesquisa Energética, Rio de Janeiro, Ano VII, Número 76, Janeiro de 2014. p. 01.

[6] TJRJ. Arguição de Inconstitucionalidade nº 0021368-90.2005.8.19.0000. Rel. Des. Roberto Wider. Órgão Julgador: Órgão Especial. Julgado em 27.03.2006.

[7] STF. Suspensão de Segurança nº 3753. Rel. Min. Gilmar Mendes. Órgão Julgador: Presidência. Despacho Publicado no D.J. do dia 22.04.2009.