Aspectos polêmicos do reestabelecimento das alíquotas do PIS/PASEP e da COFINS sobre receitas financeiras pelo Decreto nº 8.426/2015.

 por Ana Carolina Monguilod
advogada
especialista em Direito Tributário (PUC-SP)
LL.M. em Direito Tributário Internacional (Universiteit Leiden)
advogada e sócia do Levy & Salomão Advogados
Pedro Araújo Chimelli
especialista em Direito Tributário (FGV-SP)
advogado do Levy & Salomão Advogados

 

Desde sua publicação, o Decreto nº 8.426, de 1º de abril de 2015, tem provocado debates na comunidade jurídica e despertado o interesse das empresas que se veem às voltas com o iminente encerramento de um período de mais de dez anos de alíquotas zero[1] da Contribuição aos Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (“PIS/PASEP”) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (“COFINS”) sobre receitas financeiras.

Diante do reestabelecimento das alíquotas das referidas contribuições, respectivamente, para 0,65% (sessenta e cinco centésimos por cento) e 4% (quatro por cento)[2], com indisfarçado intuito arrecadatório[3], as discussões e questionamentos têm se voltado, basicamente, a duas grandes questões: (i) as consequências do reestabelecimento sobre variação cambial e operações de hedge; e (ii) a (in)constitucionalidade do aumento de tributação por Decreto, na medida em que tem por efeito o aumento de tributos.

O presente estudo, portanto, tem por objetivo comentar, de um ponto de vista técnico-jurídico, esses dois grandes pontos de tensão, no intuito de consolidar algumas primeiras impressões havidas de debates travados e consultas recebidas.

(i)  As consequências do reestabelecimento sobre variação cambial e operações de hedge;

Muito embora não haja definição precisa do conceito de “receitas financeiras”, historicamente, as receitas provenientes de variação cambial e das operações de hedge têm sido consideradas, para fins de incidência dos PIS/PASEP e da COFINS, espécies daquele gênero, como não deixam dúvidas o art. 1º, do revogado Decreto nº 5.442/05[4]; o próprio art. 1º, do ora comentado Decreto nº 8.426/15[5]; e o art. 9º, da Lei nº 9.718/98[6].

Logo, em razão das alterações promovidas pelo Decreto nº 8.426/45, sendo verificada, no mês, variação cambial ativa de direitos de crédito ou variação em operações de hedge, há grande possibilidade de que seja exigido das empresas o recolhimento do PIS/PASEP e da COFINS sobre tais valores, sob a justificativa[7] de aplicação do regime de competência à apuração das contribuições em regime não-cumulativo, ainda que os direitos não hajam sido realizados e as operações não tenha sido liquidadas.

Por outro lado, não há previsão legal para o abatimento das perdas e variações cambiais passivas em tais hipóteses, quando verificadas ao fim do período de apuração, nem mesmo a possibilidade de considerar as perdas verificadas nas operações acobertadas pelo hedge, o que expõe uma das várias distorções[8] da peculiar incidência tributária sobre “receitas”.

Entretanto, a alegação e evidenciação desta distorção em potencial, embora cumpra função política em favor da prevenção da incidência das contribuições, merece ser acompanhada por argumentos jurídicos que, igualmente, conduzem à conclusão de que tais eventos, quando verificados em momento intermediário, isto é, antes da realização do direito de crédito ou da liquidação da operação, não podem sofrer a incidência do PIS/PASEP e da COFINS.

É o que se conclui do exame de tais variações monetárias frente ao conteúdo do conceito de “receita”, didaticamente determinado por José Antônio Minatel[9], pois, considerada a evidente precariedade (não definitividade) daquelas, quando verificadas em momentos intermediários, mais se assemelham a uma expectativa de recebimento e, portanto, não ostentam características suficientes a autorizar a incidência do PIS/PASEP e da COFINS.  Para o hedge, a receita verificada seria aparente (ilusória) em face das correspondentes perdas que essa mesma operação busca cobrir.

(ii) O Decreto nº 8.426/15 e a Constituição Federal

Como adiantado, na medida em que o Decretonº 8.426/15, diploma normativo infra legal, implica aumento de tributo, tem-se questionado sua adequação à Constituição Federal de 1988, especificamente diante da previsão contida em seu art. 150, I[10], e pelo fato de as contribuições sociais não estarem abrangidas pelas exceções previstas no art. 153, §1º[11].

De fato, é regra básica ao Sistema Tributário Nacional a legalidade estrita, de modo que não se pode fugir à afirmativa de que o Decreto nº 8.426/15, ao majorar o PIS/PASEP e a COFINS, nas hipóteses sobre a qual dispôs, vai contra o texto da Constituição.

Por outro lado, conquanto este fato não possa ser juridicamente contestado, é possível defender que também as reduções das alíquotas do PIS/PASEP e da COFINS a zero, por meio do Decreto nº 5.442/05 e seu antecessor (Decreto nº 5.164/04), contrariaram a Constituição Federal, na medida em que não poderia a Lei nº 10.865/04[12] delegar ao Poder Executivo a competência para reduzir ou reestabelecer as alíquotas das contribuições incidentes sobre as receitas financeiras.  Invoca-se, para tanto, o mesmo art. 153, §1º, da Constituição de 1988 que serve de suporte à alegação de inconstitucionalidade do recente Decreto nº 8.426/15, bem como possivelmente o art. 150, § 6º do texto constitucional, se admitirmos a equivalência de isenção com alíquota zero.  O art. 97[13] do Código Tributário Nacional (“CTN”) também poderia ser mencionado, a despeito de sua recepção pela Constituição ser questionada por aqueles que pretendem afastá-lo.

Menos evidente, mas igualmente tendente a sustentar a inconstitucionalidade dos Decretos redutores das alíquotas, é a constatação de que, caso pudessem ter disposto da forma como fizeram, somente poderiam ser revogados por lei, já que sua revogação implicaria aumento de tributo. Haveria um verdadeiro ruído no sistema normativo.

Em todo caso, tomando de empréstimo as palavras do Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence, é certo que “inconstitucionalidades não se compensam”[14], o que nos leva a concluir, novamente, que é juridicamente possível pleitear o reconhecimento da inconstitucionalidade do reestabelecimento das alíquotas por meio do Decreto nº 5.442/05.  Todavia, há que se avaliar a questão com muita cautela.

Ainda que remoto o risco, diante dos princípios da inércia e da correlação ou congruência (art. 128, do CPC), é difícil ter absoluta segurança de que o magistrado responsável por analisar a questão não vai atacar os decretos anteriores ao Decreto nº 8.426/15.

Ademais, a depender de questões e condições que fogem aos limites do presente exame, não é desarrazoado cogitar que uma movimentação relevante dos contribuintes no sentido de obter declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 8.426/15 possa motivar, em sentido inverso, uma pretensão de declaração de inconstitucionalidade dos decretos anteriores, com possíveis consequências nefastas aos contribuintes, como a cobrança do PIS/PASEP e da COFINS sobre receitas financeiras às alíquotas de, respectivamente, 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento) e 7,6% (sete inteiros e seis décimos por cento), inclusive retroativamente[15].

Conclusões

Diante das breves considerações tecidas, conclui-se que, além de razões econômicas, há relevantes razões jurídicas que permitem defender a não incidência do PIS/PASEP e da COFINS sobre variações cambiais ativas e variações verificadas em operações de hedge, antes da efetiva realização dos direitos e liquidação das operações e, no caso do hedge, de maneira desligada da operação por ele acobertada.

Igualmente, há substrato normativo para a alegação de ilegalidade do reestabelecimento de alíquota do Decreto nº 8.426/15, em função da violação do texto constitucional, ainda que isto não afete os vícios da redução anterior das alíquotas, merecendo cuidado a avaliação da oportunidade de manejo de medidas judiciais.



[1]Decreto nº 5.164/04 sucedido pelo Decreto nº 5.442/05.

[2]Incidentes sobre as receitas financeiras das pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativo das contribuições.

[3] A Receita Federal estima que as alterações atinjam aproximadamente 80.000 contribuintes e representem arrecadação de acionais R$ 2,7 bilhões.

[4] “Art. 1o  Ficam reduzidas a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre as receitas financeiras, inclusive decorrentes de operações realizadas para fins de hedge, auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de incidência não-cumulativa das referidas contribuições.”

[5] “Art. 1º  Ficam restabelecidas para 0,65% (sessenta e cinco centésimos por cento) e 4% (quatro por cento), respectivamente, as alíquotas da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre receitas financeiras, inclusive decorrentes de operações realizadas para fins de hedge, auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa das referidas contribuições.”

[6] “Art. 9° As variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio ou de índices ou coeficientes aplicáveis por disposição legal ou contratual serão consideradas, para efeitos da legislação do imposto de renda, da contribuição social sobre o lucro líquido, da contribuição PIS/PASEP e da COFINS, como receitas ou despesas financeiras, conforme o caso.”

[7] Equivocada, em nosso entendimento, visto que o “regime de competência”, voltado à apuração do “resultado” da empresa, não é válido para determinar a materialidade do conceito jurídico de “receita”, mais à frente comentado.

[8] Cite-se, como outro exemplo de situação distorcida, a incidência das contribuições sobre receita em casos de inadimplência.

[9]“Nessa perspectiva e aderindo ao ensinamento de que “o conceito é seletor de propriedades, segundo o critério que preside a investigação”, anunciamos ser receita qualificada pelo ingresso de recursos financeiros no patrimônio da pessoa jurídica, em caráter definitivo, proveniente dos negócios jurídicos que envolvam o exercício da atividade empresarial, que corresponda à contraprestação pela venda de mercadorias, pela prestação de serviços, assim como pela remuneração de investimentos ou pela cessão onerosa ou temporária de direitos a terceiros, aferido instantaneamente pela contrapartida que remunera cada um desses eventos.” (MINATEL, José Antônio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua tributação. São Paulo: MP Editora, 2005. p. 124) itálico no original.

[10] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”

[11]“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:I - importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III - renda e proventos de qualquer natureza; IV - produtos industrializados; V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI - propriedade territorial rural; VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

§ 1º - É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.”

[12] “Art. 27 [...]. § 2o O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer, até os percentuais de que tratam os incisos I e II do caput do art. 8o desta Lei, as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade das referidas contribuições, nas hipóteses que fixar.”.

[13] “Art. 97. Somente a lei pode estabelecer: (...)

II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65; (...)

IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65”

[14]ADI 2377 MC, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 22/02/2001, DJ 07-11-2003.

[15] Caso em que a boa-fé dos contribuintes deveria afastar a cobrança, no mínimo de juros e multa, com fundamento no art. 100, § único do CTN, que os afastaria mesmo para normas complementares a leis, tratados, convenções internacionais e aos próprios decretos.