O restabelecimento das alíquotas de PIS e COFINS aplicáveis às receitas financeiras pelo Decreto nº 8.426/2015

por Ramon Tomazela Santos
Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP)
Master of Laws (LL.M.) candidate em tributação internacional na Universidade de Viena (Wirtschaftsuniversität Wien - WU)
Advogado em São Paulo

 

1.  Introdução

Com a recente edição do Decreto nº 8.426/2015, o Governo Federal reestabeleceu as alíquotas do PIS e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime não-cumulativo. Assim, a partir de 1º de julho de 2015, as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas submetidas ao regime não-cumulativo, anteriormente beneficiadas com alíquota zero, passam a estar sujeitas à incidência do PIS e da COFINS às alíquotas de 0,65% e 4%, respectivamente.

No presente artigo, pretende-se apresentar breves considerações sobre as dificuldades iniciais que serão enfrentas em virtude da edição do Decreto nº 8.426/2015, especificamente em relação aos seguintes aspectos: o impacto da tributação sobre os investimentos financeiros, a abrangência do conceito de receita financeira, a inclusão da variação cambial na imunidade concedida às receitas de exportação e, por fim, os potenciais efeitos negativos para as operações com finalidade de cobertura (“hedge”).

2.  A justificativa para a desoneração das receitas financeiras

 Sob o ponto de vista de política fiscal, o primeiro aspecto a ser examinado diz respeito à justificativa econômica e ao critério técnico-jurídico para a desoneração das receitas financeiras, mediante a concessão de alíquota zero de PIS e COFINS. De um lado, o fundamento econômico para a alíquota zero atribuída às receitas financeiras consiste na desoneração dos investimentos e no estímulo à formação de poupança, que aumentam o estoque de capital e contribuem para a realização de investimentos em bens de produção, alavancando a capacidade produtiva da pessoa jurídica. De outro lado, o critério técnico-jurídico diz respeito a sua natureza jurídica de resultado de investimento, que não representa materialidade adequada para a cobrança de um imposto sobre o consumo, seja sob a forma de um Value Added Tax (VAT), seja sob a forma de um Turnover Tax (TT). 

É possível antever, sem necessidade de maior investigação, que a opção do Governo Federal de reestabelecer as alíquotas de PIS e COFINS incidentes sobre as receitas financeiras interferirá diretamente no custo das operações financeiras. Isso porque a taxa de juros cobrada na operação financeira poderá ser maior ou menor a depender da tributação incidente sobre o credor, pois o impacto econômico do tributo será repassado no custo de captação de recursos no mercado. Dessa forma, o impacto imediato do Decreto nº 8.426/2015 será aumento do custo da operação de captação no mercado, bem como o desestímulo à realização de operações financeiras para custear a aquisição de bens e serviços. Por tais razões, pode-se dizer que andou mal o Poder Executivo ao restabelecer as alíquotas de PIS e COFINS justamente em um momento de instabilidade econômica, que deveria ser enfrentando por meio de ajustes nas contas públicas e do combate ao mau uso dos recursos público, sem a realização de mudanças na legislação tributária que interferem negativamente na dinâmica do mercado e afetam o desenvolvimento econômico.

3.  O conceito de receita financeira

Deixando de lado a questão de política fiscal, a segunda dificuldade decorrente da edição do Decreto nº 8.426/2015 envolve a intepretação do conceito de receita financeira, que poderá suscitar inúmeras controvérsias em relação ao seu alcance. O artigo 373 do Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo Decreto nº 3000/1999, cuja matriz legal corresponde ao artigo 17 do Decreto-lei nº 1598/1977, relaciona os principais tipos de receitas financeiras e disciplina o tratamento jurídico-tributário a ser seguido para a sua imputação ao lucro operacional da pessoa jurídica. Veja-se:

“Art. 373.  Os juros, o desconto, o lucro na operação de reporte e os rendimentos de aplicações financeiras de renda fixa, ganhos pelo contribuinte, serão incluídos no lucro operacional e, quando derivados de operações ou títulos com vencimento posterior ao encerramento do período de apuração, poderão ser rateados pelos períodos a que competirem”.

Ademais, o artigo 9º da Lei nº 9718/1998 expressamente incluiu, no conceito de receitas financeiras, as “variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio ou de índices ou coeficientes aplicáveis por disposição legal ou contratual”.

A principal dúvida que emerge dos dispositivos legais citados acima diz respeito ao seu caráter exemplificativo (aberto) ou taxativo (fechado). A redação do artigo 373 do RIR/99 não utiliza as expressões comumente utilizadas pelo legislador em catálogos ou listas exemplificativas (v.g.dentre outros”, “entre os quais”, “notadamente”, “sem prejuízo de outros”), o que pode levar o intérprete a considerar, pelo menos em uma primeira leitura, que o rol nele contido é exaustivo ou “numerus clausus”. Porém, a despeito da ausência das expressões geralmente utilizadas para evidenciar o caráter aberto do texto legal, é preciso ponderar que a mera técnica de redação não pode ser considerada um critério decisivo. Ao contrário, na maior parte das vezes, fica a cargo do intérprete a tarefa de identificar se o elenco inserido no texto legal é taxativo ou exemplificativo.

Nesta atividade hermenêutica, é preciso ponderar que o legislador, por vezes, ao invés de inserir uma definição plena e exaustiva de determinado conceito jurídico, com base em descrição abstrata dos seus contornos, optar por elencar situações de fatos ou categoriais jurídicas que se enquadram no escopo da definição legal. Isso acontece, principalmente, em razão da dificuldade de fornecer uma definição precisa e analítica para certos termos, que é superada mediante a utilização de exemplos. Ocorre que, ao optar pela utilização de exemplos, o legislador nem sempre tem condições de prever acuradamente todos elementos ou categorias jurídicas que merecem figurar no enunciado normativo, o que justifica a sua interpretação a partir dos parâmetros que podem ser extraídos dos exemplos nele utilizados, sem restringir o seu alcance aos elementos expressamente citados. Por essa razão, as espécies de receitas financeiras elencadas no artigo 373 do RIR/99 podem ser utilizadas como parâmetro para a extração das características típicas das receitas financeiras em geral, sem esgotar o seu universo de possibilidades.

Apenas para ilustrar a afirmação, cite-se o caso do prêmio decorrente de contratos de câmbio de exportação, que corresponde à parcela da remuneração paga ao exportador pelo banco interveniente na operação de venda de câmbio para liquidação futura, o qual foi considerado como receita financeira pela Portaria MF nº 356/1988, segundo a qual: o prêmio sobre contratos de câmbio de exportações constitui receita financeira para fins de determinação do lucro real”. Observe-se que a referida Portaria é posterior ao artigo 17 do Decreto-lei nº 1598/1977, que serve de matriz legal para o artigo 373 do RIR/99, o que aventa o caráter exemplificativo do texto legal. De modo semelhante, a Administração Tributária, no Ato Declaratório SRF nº 85/1999, asseverou que as reduções de dívidas devem ser reconhecidas como receitas financeiras para fins de tributação, embora já houvesse discussão, na prática tributária, a respeito do enquadramento do perdão de dívida como receita financeira[1] para fins de aplicação da alíquota zero de PIS e COFINS anteriormente prevista no Decreto nº 5164/2004.

As receitas financeiras geralmente têm o objetivo de remunerar o custo do capital no tempo, o risco de inadimplemento, a indisponibilidade dos recursos financeiros pela sua colocação à disposição do devedor, entre outros fatores. Destarte, com o restabelecimento das alíquotas de PIS e COFINS pelo Decreto nº 8.426/2015, é possível que surjam novas discussões a respeito da interpretação do conceito de receita financeira, sobretudo em razão da dinâmica dos mercados financeiros e de capitais.

4.  A variação cambial e as receitas de exportação

Como se sabe, o artigo 30 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001 dispõe que as variações monetárias dos direitos de crédito e das obrigações do contribuinte, em função da taxa de câmbio, serão consideradas, para efeito de determinação das bases de cálculo do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, quando da liquidação da correspondente operação, segundo o regime de caixa. Alternativamente, a lei permite que o contribuinte opte pelo reconhecimento das variações cambiais pelo regime de competência.

Neste ponto, a questão que se coloca diz respeito à abrangência da decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário nº 627.815, sob a sistemática do artigo 543-C do Código de Processo Civil, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de conferir máxima efetividade à imunidade outorgada pelo artigo 149, § 2º, inciso I, da Constituição Federal, afastou a incidência do PIS e da COFINS sobre as variações cambais positivas relativas às receitas decorrentes de exportações.

A dúvida que pode surgir, neste ponto, consiste em saber se a desoneração constitucional também alcança as receitas de variação cambial decorrentes de contratos de pré-pagamento de exportação (“PPE”), no qual a sociedade exportadora capta recursos em moeda estrangeira junto à instituição financeira ou ao próprio importador no exterior, com o objetivo de financiar os custos de produção da mercadoria a ser exportada.

A rigor, considerando que o contrato de PPE pode ser visto como uma operação de antecipação de receitas de exportação, eis que o passivo exigível relativo aos recursos antecipados é amortizado à medida do embarque das mercadorias, com o consequente reconhecimento das receitas de exportacão, é possível entender, com base no objetivo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal de conferir máxima efetividade à desoneração constitucional, que as receitas decorrentes das variações cambiais ativas relativas aos recursos antecipados não estão sujeitas à incidência do PIS e da COFINS.

5.  A variação cambial e as operações com finalidade de cobertura

Com relação às operações com finalidade de cobertura (“operações de hedge”), é possível dizer, à primeira vista, que a inclusão dos seus resultados positivos no âmbito das receitas financeiras tributadas pelo PIS e COFINS teve o objetivo de manter a igualdade e a neutralidade no tratamento tributário aplicável aos resultados do item patrimonial protegido e do contrato derivativo utilizado. Isso porque, se não fosse assim, o contribuinte que auferisse variação cambial positiva e perda na operação de hedge seria tributado pelo PIS e COFINS, ao passo que o contribuinte que auferisse variação cambial negativa e ganho na operação de hedge não estaria sujeito ao pagamento de PIS e COFINS.

A despeito da coerência aparentemente buscada pelo Poder Executivo, é preciso destacar que o ganho ou a perda da operação com finalidade de cobertura não será, necessariamente, equivalente à perda ou ao ganho decorrente do impacto do câmbio sobre o item patrimonial protegido, pois isso dependerá, basicamente, das características instrumento financeiro utilizado, da estratégia de proteção empregada, do grau de proteção buscado (integral ou parcial) e até mesmo de diferenças temporais entre as datas de liquidação das operações. Como exemplo, basta imaginar o caso de sociedade exportadora que possui em seu balanço patrimonial ativos e passivos denominados em moeda estrangeira, realizando operações de hedge para proteger a exposição cambial líquida. Vê-se, a partir do exemplo citado, que o resultado final da variação cambial e o resultado final da operação de hedge, para efeito de apuração das bases de cálculo do PIS e da COFINS, não serão necessariamente simétricos, como pode parecer à primeira vista. Vale enfatizar que esse efeito dissonante no resultado poderá ocorrer mesmo que a sociedade exportadora utilize instrumentos derivativos com estrutura simples (“plain vanilla”) e com valor nocional inferior à exposição cambial, tendo em vista que as diferenças ora destacadas não têm relação direta com a contratação de instrumentos derivativos em volume superior às necessidades de proteção (alavancagem), tampouco com a utilização de derivativos exóticos, formatados e customizados através de engenharia financeira. Isso mostra que há diversos fatores que podem influenciar na estruturação das operações de cobertura, cujos impactos para o mercado não foram devidamente sopesados pelo Governo Federal.

Para evitar os problemas que podem surgir em razão dos aspectos mencionados acima e, ao mesmo tempo, manter a neutralidade no tratamento tributário dos resultados positivos e negativos, é evidente que o Governo Federal deveria ter permitido a compensação de eventual variação cambial negativa, bem como o aproveitamento de créditos de PIS e COFINS em relação às despesas financeiras. Como é notório, a postura do Poder Executivo de olhar apenas para um lado da moeda (as receitas financeiras) evidencia que a única justificativa para a edição do Decreto nº 8.426/2015 repousa na ânsia pelo aumento da arrecadação fiscal, sem qualquer preocupação com seus impactos nocivos para a economia, bem como com a violação dos direitos dos contribuintes.

 6.  A criticável assimetria na legislação do PIS e da COFINS

 A discussão acerca da validade da delegação legislativa contida no artigo 27, parágrafo 2º, da Lei nº 10.865/2004 em face do artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, bem como dos impactos decorrentes de sua eventual inconstitucionalidade (i.e. restabelecimento das alíquotas gerais do PIS e da COFINS ou da alíquota zero até então em vigor) ultrapassa os limites do presente estudo. Entretanto, há de se pontuar que, na interpretação dos limites que circunscrevem o exercício da delegação legislativa, deve-se considerar o seu caráter excepcional dentro do ordenamento jurídico, que se afasta da tripartição dos poderes e da competência do poder legislativo na função típica de inserir normas gerais e abstratas no ordenamento jurídico, sobretudo em matéria tributária.

Os impactos nocivos para o desenvolvimento econômico, a impossibilidade de compensação da variação cambial negativa e a ausência de previsão legal para o aproveitamento de créditos de PIS e COFINS sobre as despesas financeiras permitem que se questione a inobservância dos limites da delegação legislativa e, até mesmo, a conveniência pública (conjectura que justifica a sua edição) do Decreto nº 8.426/2015, na condição de ato do Poder Executivo. Sob o ponto de vista estritamente jurídico, ainda que se reconheça que a redução ou reestabelecimento das alíquotas de PIS e COFINS sobre as receitas financeiras está submetida ao juízo de conveniência e oportunidade (mérito do ato administrativo), é certo que a Administração Pública, por força dos princípios constitucionais que norteiam a sua atuação, sobretudo na seara tributária, não pode realizar exercer tal faculdade a seu talante, sem levar em consideração as diretrizes constitucionais que norteiam a incidência do PIS e da COFINS, em especial o sistema não-cumulativo de incidência plasmado no texto constitucional e a racionalidade do sistema tributário. A opção do legislador pela introdução do regime não-cumulativo do PIS e da COFINS para determinados segmentos econômicos exige a sua aplicação uniforme e isenta de contradições, sob pena de violação ao princípio da igualdade. É evidente, pois, que o Estado não pode atuar arbitrariamente no exercício da delegação legislativa, ignorando a coerência e a racionalidade do regime não-cumulativo de incidência de tais contribuições[2]

Apenas para ilustrar a importância da vinculação entre a tributação e o desconto de crédito, relembre-se que o artigo 84 da Lei nº 10.833/2003, antes da sua revogação pelo artigo 35, inciso IV, da Lei nº 11.051/2004, permitia que a pessoa jurídica não-financeira, sujeita à incidência não-cumulativa, apurasse crédito de COFINS calculado sobre o valor das perdas apuradas nas operações de hedge realizadas em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros ou no mercado de balcão. A Lei nº 11.051/2004, ao revogar o artigo 84 da Lei nº 10.833/2003, dispôs expressamente que essa revogação produziria efeito a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente ao da publicação (i.e. 01.04.2005), justamente a data que entrou em vigor a alíquota zero de PIS e COFINS anteriormente aplicável às receitas financeiras, na vigência do Decreto 5.442/2005. Isso evidencia que, mesmo no âmbito do regime não-cumulativo do PIS e da COFINS, que é marcado por inúmeras incongruências e irracionalidades, houve a preocupação do legislador com a preservação da simetria entre a tributação das receitas financeiras e o desconto de créditos relativos às despesas financeiras, como é natural em qualquer tributo estruturado sob o regime da não-cumulatividade.

Logo, o Poder Judiciário pode apreciar o juízo de conveniência e oportunidade do Decreto nº 8.426/2015 não apenas em face das razões fáticas ou jurídicas determinantes para a sua edição, mas também à luz do princípio da não-cumulatividade, que requer a preservação de simetria entre a tributação das receitas financeiras e o desconto de créditos de PIS e COFINS sobre as despesas financeiras.

 7.  Conclusões

Com base nas anotações acima, pode-se concluir que:

- o restabelecimento das alíquotas de PIS e COFINS pelo Decreto nº 8.426/2015 é absolutamente criticável sob o ponto de vista de política fiscal, pois aumenta o custo de capital e desestimula a realização de investimentos;

- as receitas financeiras não representam materialidade adequada para a cobrança de um imposto sobre o consumo, como o PIS e a COFINS;

- para respeitar a coerência e a não-cumulatividade, o Governo Federal deveria ter permitido a compensação de eventual variação cambial negativa, bem como o aproveitamento de créditos de PIS e COFINS em relação às despesas financeiras;

- o Poder Judiciário pode apreciar o juízo de conveniência e oportunidade do Decreto nº 8.426/2015, tendo em vista que a Administração Pública, por força dos princípios constitucionais que norteiam a sua atuação, sobretudo na seara tributária, não pode realizar exercer tal faculdade a seu talante, sem levar em consideração o princípio da não-cumulatividade, que norteia a incidência do PIS e da COFINS.



[1]Cf. Solução de Consulta nº 17, de 27 de Abril de 2010.

[2] ÁVILA, Humberto. “O postulado do legislador coerente e a não-cumulatividade das contribuições”. Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. São Paulo: Dialética, 2007. pp. 180-181.