Decreto n. 8.426/15 - PIS/COFINS sobre receitas financeiras, incluindo tributação das operações de hedge e aspectos polêmicos dos efeitos de variação cambial

 por Andréa Mascitto
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo
Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo  Advogada em São Paulo
Cristina Mari Funagoshi
 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
 Advogada em São Paulo

 

 I. Introdução 

Desde o final do ano de 2014, o Governo tem adotado um duro ajuste fiscal objetivando aumentar a arrecadação tributária e também atingir, por via de consequência, a meta de superávit primário.

Nesse contexto, a recente edição do Decreto nº 8.426, de 1º de abril de 2015, pelo qual o Poder Executivo restabeleceu o PIS e a COFINS incidentes sobre receitas financeiras, inclusive decorrentes de operações de hedge, tem sido objeto de amplo debate no meio jurídico empresarial.

 De acordo com essa norma, e respeitada a anterioridade nonagesimal, a partir de 01/07/2015 os contribuintes submetidos à sistemática não cumulativa de apuração e recolhimento do PIS e da COFINS ficarão sujeitos ao recolhimento de PIS/COFINS sobre receitas financeiras à alíquota global de 4,65%[1] (0,65% de PIS e 4% de COFINS), não podendo apropriar-se de créditos sobre as respectivas despesas financeiras.

Neste artigo apresentaremos um breve histórico da tributação das receitas financeiras e apontaremos os principais argumentos que vêm sendo debatidos para fins de seu enfrentamento, lembrando que a discussão é bastante recente e que novas ideias podem surgir, especialmente após o cotejo da aplicação prática da regra em face dos inúmeros instrumentos financeiros disponíveis hoje no mercado e também após as medidas complementares que esperamos venham a ser editadas pelo Governo para clarear os amplos contornos dessa regra, razão pela qual não temos a pretensão de esgotar o tema (de tamanha complexidade) nessas poucas páginas.

II. Histórico das contribuições PIS/COFINS x receitas financeiras

 A tributação de receitas financeiras surgiu ao final de 1998, com a edição da Lei nº 9.718, que pretendeu tributar a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica ao equiparar “faturamento” à “receita bruta”, sendo irrelevante o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas.

 O artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/98, entretanto, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal[2], sob o entendimento de que teria havido uma indevida ampliação da base de cálculo do PIS e da COFINS, visto que editado anteriormente à Emenda Constitucional nº 20, a qual não teve o condão de lhe convalidar.

Foi já nesse novo contexto, pós EC 20/98, que foram editadas as Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03, as quais criaram a sistemática não cumulativa do PIS e da COFINS, prevendo a incidência de tais contribuições sobre o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica à alíquota global de 9,25%[3]. .

Vale notar que, conforme disposto no artigo 3º, inciso V, da Lei 10.637/02 e da Lei 10.833/03 (antiga redação), as pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo estavam autorizadas a descontar créditos calculados em relação às despesas financeiras decorrentes de empréstimos financeiros e contraprestações de operações de arrendamento mercantil.

Ato contínuo, em 2004, a Lei nº 10.865 (artigo 27, parágrafo 2º) estabeleceu que o Poder Executivo poderia reduzir ou restabelecer as alíquotas do PIS e da COFINS, até o limite de 9,25%, incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas à sistemática não cumulativa de incidência dessas contribuições. Tal lei também alterou a legislação anterior, retirando a possibilidade das pessoas jurídicas se creditarem de valores referente a despesas financeiras decorrentes de empréstimo ou financiamento. Passou então a ser também de competência do Poder Executivo autorizar o desconto de crédito.

Com base nessa autorização legal, em 2004 o Poder Executivo editou o Decreto nº 5.164 e posteriormente, em 2005, o Decreto 5.442, ficando ao final reduzida a zero as alíquotas do PIS e da COFINS sobre receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas com pelo menos parte de suas receitas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa das referidas contribuições. Essa redução também se aplicava às operações realizadas para fins de hedge, mantendo-se, no entanto, a tributação das receitas de JCP à alíquota de 9,25%.

 Essa redução de alíquota vigorou desde 2004 até este ano de 2015, quando em meio ao atual cenário econômico, foi editado o Decreto 8.426/15 em comento, restabelecendo a incidência do PIS e da COFINS sobre receitas financeiras à alíquota total de 4,65%, sem direito ao creditamento, como esclarecido inicialmente.

III. Possíveis argumentos para questionar o Decreto n° 8.426/15

 A nosso ver, os argumentos para questionamento de tal exigência, da forma como instituída, têm raízes principiológicas, a saber:

(i) Violação ao princípio da legalidade, pois as alíquotas das contribuições somente poderiam ser majoradas por lei, e não por Decreto do Poder Executivo;

(ii) Violação ao princípio da não cumulatividade do PIS/COFINS, visto que não foi concedido o respectivo direito de crédito aos contribuintes; e

(iii) Violação à isonomia (e também ofensa ao princípio da capacidade contributiva), por não dar um tratamento tributável diferenciado compatível com as desigualdades dos contribuintes observadas historicamente pela jurisprudência.

 O primeiro argumento decorre justamente do fato de a CF/88 não delegar ao Poder Executivo o poder de aumentar a alíquota do PIS e da COFINS. Essa delegação é constitucionalmente assegurada apenas para os tributos revestidos de extrafiscalidade, como o II, IE, IPI e o IOF por exemplo (os quais são excepcionados do princípio da legalidade), mas não para as contribuições sociais. Dessa forma, qualquer outro tributo que fosse majorado por ato do Poder Executivo violaria o princípio da legalidade previsto no artigo 150, inciso I, da CF/88, o qual estabelece que é vedado à União, Estados e Municípios exigir ou majorar tributo sem lei que o estabeleça.

O segundo argumento decorre do fato de que, ao determinar a tributação de receitas financeiras pelo PIS/COFINS sem garantir o respectivo crédito, o Decreto 8.426/15 está em desacordo com a própria sistemática não cumulativa das contribuições.

Em sendo este o “pano de fundo” da tributação em comento, ele não pode ser ignorado. A sistemática não cumulativa do PIS/COFINS é estruturada a partir da ideia de que as incidências impostas estarão acompanhadas de direitos de crédito, tal como inicialmente vislumbrado pelo legislador que instituiu as contribuições sobre as receitas financeiras. Assim, há bons argumentos para defender a sua ilegalidade em razão do Decreto 8.426/15 ser contrário à própria sistemática não cumulativa delineada em lei. 

            Adicionalmente, ao considerarmos que o Decreto 8.426/15 está a exigir a mesma carga tributária aplicável às instituições financeiras (alíquota de 4,65% para ambas); ou melhor dizendo, uma carga tributária maior às empresas em geral, visto que as instituições financeiras possuem o direito de deduzir o respectivo custo de captação de seus recursos financeiros (crédito) nos termos da Lei 9.715/1998 e as empresas em geral não, entendemos que acaba também por violar a isonomia e a capacidade contributiva.

 O princípio da capacidade contributiva estabelece que os tributos devem ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Por seu turno, com relação ao princípio da isonomia, o STF entende que as diferenças de tratamento tributário são comuns e necessárias para a adequação da tributação às diversas circunstâncias que dizem respeito à imposição dos ônus tributários. Tanto é verdade que as instituições financeiras já perderam diversas disputas em juízo justamente por se entender que esse setor deve se sujeitar a um tratamento tributário diferenciado (leia-se mais oneroso) já que apresentam uma maior capacidade contributiva.

 O desrespeito a esses princípios ocorre, porém, ao verificarmos que não está sendo dado tratamento diferenciado na presente hipótese na exata medida das desigualdades dos contribuintes. Pelo contrário, ao equiparar as alíquotas e prejudicar as empresas em geral pela não autorização da tomada de créditos, os quais são autorizados à instituição financeira, está-se implementando norma que contradiz a posição jurisprudencial sobre esses dois institutos (isonomia e capacidade contributiva) de forma totalmente ilógica e injustificável.

IV.  A tributação das operações de hedge e variações cambiais

Ao tomarmos as operações de hedge e também outras operações que importem variação cambial como exemplos de “fontes” de receitas financeiras indicadas como tributável pelo PIS e pela COFINS, a situação se torna ainda mais peculiar. Lembre-se desde logo que as operações de hedge se caracterizam como uma proteção adquirida pela pessoa jurídica com a finalidade de contrapor os efeitos da variação no valor de suas obrigações (passivos). A ideia é de proteção e não de ganho (ou perda). Por seu turno, as operações sujeitas à variação cambial estão suscetíveis ao comportamento do mercado que as reindexa constantemente, não significando porém qualquer ganho ou perda até que haja sua efetiva liquidação.

Com as novas regras, qualquer resultado positivo dessas operações serão em tese tributáveis pelo PIS/COFINS. A forma e o momento da apuração desse resultado dependerá da observância do regime de caixa, para fins de hedge (isto é, quando da liquidação do contrato, cessão ou encerramento da posição), e caixa ou de competência, para as variações cambiais[4]. Quando a opção é facultada, a essoa jurídica deve manifestá-la no início de cada ano-calendário, a qual valerá para todo o ano.

Nesse contexto, vale notar que se determinada sociedade optar pelo regime de caixa, não poderá se valer de eventual perda com a variação cambial pelo regime de competência; se optar pelo regime de competência, deverá pagar PIS e COFINS sobre uma receita que poderá revelar-se fictícia, já que quando os direitos de crédito e as obrigações contratadas forem liquidadas, eventualmente as valorizações do real em certos períodos poderão ter sido adsorvidas por desvalorizações mais acentuadas. Assim, a empresa não poderá, dada a sistemática de cálculo do PIS e da COFINS, deduzir o que foi pago nos períodos de variação cambial positiva.

Portanto, em um cenário de desvalorização cambial como o presente, é preferível, em linhas gerais, o reconhecimento de resultados de variação cambial pelo regime de caixa, vez que tais ganhos somente serão tributados (IRPJ, CSL, PIS/COFINS) quando da realização do ativo que deu origem a tal ganho.

Por outro lado, em um cenário de valorização cambial (valorização do real frente à moeda estrangeira), é preferível, em linhas gerais, o reconhecimento de resultados de variação cambial pelo regime de competência.

A desvantagem do reconhecimento de resultados de variação cambial pelo regime de competência consiste na tributação, pelo PIS/COFINS, de eventuais receitas originadas de oscilações na taxa de câmbio. Exemplo: (1) em 1.1.XX, determinado ativo denominado em moeda estrangeira vale R$ 100,00; (2) em 1.2.XX, ocorre uma desvalorização cambial, de forma que referido ativo passa a valer R$ 150,00; (3) em 1.3.XX, ocorre uma valorização cambial, de forma que o ativo passa a valer novamente R$ 100,00; e (4) em 1.4.XX, após nova desvalorização cambial, o ativo passa a valer R$ 160,00. Conforme se observa no exemplo acima, os momentos 2 e 4 acarretariam o reconhecimento de “receitas” pelo contribuinte, as quais estariam sujeitas à incidência do PIS/COFINS, mesmo não representando efetivos ingressos.

 Nessa linha deve ser ressalvado que o reconhecimento de potenciais receitas antes da liquidação dos contratos em moeda estrangeira[5] implica tributação de uma “receita fictícia”, não definitiva (mera expectativa), o que a nosso ver não poderia ser gravado pelas contribuições em comento por colidir com o próprio conceito de receita e enseja a oposição dos contribuintes.

 Adicionalmente, não nos parece crível que, diante da nova regulamentação, a empresa não possa efetuar o reconhecimento tributário dessas receitas financeiras no momento da liquidação das obrigações, mesmo que tenha optado pelo regime de competência. Isso porque, ao fazer a opção por um ou outro regime no início do ano-calendário, a pessoa jurídica não tinha como antecipar os efeitos de sua decisão em relação ao pagamento de PIS/COFINS sobre receitas financeiras, visto que a imposição tributaria surgiu ao longo do ano e simplesmente alterou o cenário jurídico tributário, afetando a previsibilidade dos custos tributários das empresas e a segurança jurídica com base em alteração normativa superveniente.

 V. Conclusão:

 Pelo quanto antecipado acima, podemos concluir que os contribuintes apresentarão diversas dúvidas e questionamentos relacionados à novel pretensão de tributação das receitas financeiras do PIS e da COFINS e que há bons argumentos para questioná-la, sejam eles principiológicos (legalidade, isonomia, capacidade contributiva), legais (técnica não cumulativa dessas contribuições) ou mesmo conceituais (conceito de receita).

Entretanto, como o Decreto é recente e vem gerando grandes inquietação na comunidade jurídica e empresarial, até em razão da multiplicidade de instrumentos financeiros hoje a disposição no mercado com diferentes naturezas e características (tal como o hedge e contratos sujeitos à variação cambial), acreditamos que o Governo deverá editar normas complementares regulamentares, de sorte que julgamos recomendável que se aguarde tais normas para então discutir o tema perante o Judiciário com a causa um pouco mais amadurecida e refletida.



[1] Exceção feita ao JCP, que permanece sofrendo a tributação à alíquota de 9,25%.

[2] Recurso Extraordinário nº 390.840/MG, STF, Ministro Relator Marco Aurélio, julgado em 9.11.2005.

[3] Ressaltamos que o conceito de receita deve ser depreendido da interpretação conjunta dos artigos 149 e 195, da Constituição Federal.

[4] Artigo 32 da Lei nº 11.051/04 (mercado de liquidação futura: contratos com propósito de hedge) e artigo 30 da Medida Provisória nº 2.158-35/01 (variação cambial: IR/CSL/PIS/COFINS).

[5] Isso sem nem mesmo enfrentar a questão da imunidade sobre as receitas de exportação.