A MP 685 E O DIREITO DE NÃO PERMANECER CALADO: A experiência da África do Sul com o Mandatory Disclosure Rules

por Rebeca Drummond de A. Müller
Advogada
Visiting Researcher no SAIFAC, Universidade de Joanesburgo

 

1. INTRODUÇÃO

A grande discussão da atualidade atinge em cheio um dos instrumentos mais preciosos do mundo corporativo: o planejamento tributário. Em tempos de austeridade, o clima de "vale-tudo" para acalmar as contas públicas é evidente. Nesse cenário, as apostas surgem na adoção de um novo modelo de cooperação, brindando a transparência e, como exposto pelo jurista Heleno Tôrres, a chegada de um "Fisco Global".

O objetivo é iluminar o caminho de um mundo globalizado rumo à justiça fiscal. A diminuição da capacidade das multinacionais em reduzir a incidência da carga tributária doméstica, por intermédio de arranjos financeiros legais, se tornou um inimigo a ser combatido.

À sombra desse ideal, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE reagiu ao pleito do G-20, formalizado na reunião de junho de 2012, em Los Cabos, México, ao apresentar, em 2013, o Plano de Ação contra a Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros, o Base Erosion and Profit Shifting - BEPS.

Nessa corrida em busca de regras tributárias nacionais e internacionais mais sólidas e estreitas, diferentes países já se mobilizaram para adequar as suas regras aos comandos desenhados pela OCDE. No Brasil, não poderia ser diferente.

A edição da Medida Provisória n. 685, de 21 de julho de 2015, homenageia, em seus arts. 7ºao 12, o Plano de Ação 12 do BEPS, ao exigir a divulgação das estratégias utilizadas nos planejamentos tributários. Em alusão à garantia fundamental ao silêncio, cria-se, agora, o direito de não permanecer calado.

Em sua exposição de motivos, o Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, enfatizou a necessidade da adoção da medida como um meio de nos adequarmos aos padrões internacionais. Na oportunidade, destacou, com base na menção feita pela OCDE, a trajetória satisfatória da África do Sul.

O presente artigo tem como objetivo apresentar algumas vertentes da experiência sul africana em relação à obrigatoriedade da divulgação de operações financeiras, além de demostrar como o Brasil, através da MP 685/2015, esvaziou o real espírito do BEPS ao apresentar a sua versão subjetiva e genérica do Mandatory Disclosure Rules (MDR), ou Regras de Revelação Obrigatória, incluídas no Plano de Ação 12 da OCDE.

2. A COMISSÃO DAVIS DE TRIBUTAÇÃO

A África do Sul tem como rotina a revisão das legislações sobre direito tributário. Em fevereiro de cada ano, o Ministro das Finanças vai ao Parlamento – numa solenidade concorridíssima - para anunciar o orçamento público anual, o que inclui as previsões das despesas públicas para o próximo ano e as propostas de emendas às leis tributárias.

A preocupação com a atualização das legislações que regem o sistema fiscal é tamanha, que o governo sul africano costuma nomear "comissões de inquérito" para que estas elaborem relatórios minuciosos sobre os aspectos da estrutura tributária com o fim de identificar as áreas carentes de reformas.[1]

Desde a fundação da República, três comissões foram apontadas. A quarta e mais recente comissão, anunciada em 27 de fevereiro de 2013, leva o sobrenome de seu presidente, o juiz Dennis Davis. Trata-se da The Davis Tax Committee (DTC). Ela tem como mote a promoção do crescimento econômico inclusivo, a criação de emprego, desenvolvimento e sustentabilidade fiscal.

Os trabalhos realizados são extensos, e contam com a participação de membros do governo, autoridades fiscais, advogados e empresários. A comissão é incumbida de enviar ao Ministro das Finanças as recomendações advindas dos relatórios elaborados. Após, as propostas também ficam sujeitas à consulta do poder legislativo.

Um dos compromissos do DTC abrange o confronto do sistema tributário da África do Sul com os padrões internacionais, o que inclui iniciativas para aprimorar o tax compliance e a questão da erosão da base fiscal. Com a explosão dos planos de ação da OCDE, por intermédio do BEPS, a comissão não tem medido esforços no cotejo de suas regras internas com as internacionais, dedicando-se integralmente à missão. Nessa caçada, as já em vigor regras de Mandatory Disclosure também se tornaram um alvo. [2]

A Comissão Davis está perto de finalizar o relatório sobre o  Plano de Ação 12. Contudo, será apenas no pronunciamento sobre o orçamento anual do Ministro das Finanças, Nhlanhla Nene, em fevereiro de 2016, quando saberemos se alguma manutenção dos atuais diplomas legais sobre o assunto será efetuada.

É fácil perceber o Comitê Davis de Tributação como uma das pedras-de-toque que compõem a estrutura da reforma tributária na África do Sul. É um símbolo que representa a construção do diálogo institucional e a possibilidade de caminhar em passos largos rumo ao aperfeiçoamento fiscal em benefício de todos.

Ademais, como mencionado, regras sobre a obrigatoriedade da abertura de arranjos tributários  não são novidade  no país africano. Desde 1962, diferentes legislações desenham o pano de fundo do que eles denominaram de reportable arrangements, pilar responsável por combater os riscos decorrentes dos planejamentos tributários considerados agressivos, ideal agora pavimentado pelo BEPS.

3. COMO AS TRANSAÇÕES TRIBUTÁRIAS DEVEM SER INFORMADAS À AUTORIDADE FISCAL SUL AFRICANA

Na África do Sul, o instituto das regras de revelação obrigatória é chamado de reportable arrangements, encorpado, basicamente, pelas Lei de Imposto de Renda n. 58 de 1962, Lei das Empresas n. 71 de 2008, Lei da Administração Fiscal n. 28 de 2011 e da nota pública n. 212 de 16 de março de 2015, elaborada pela South African Revenue Service (SARS).[3]

A SARS veste o mesmo manto da Receita Federal do Brasil, sendo um órgão de nível nacional responsável pela fiscalização e recolhimento de tributos.Com viés semelhante ao da nossa Instrução Normativa, as notas públicas têm o poder de determinar quais outros arranjos fiscais, e suas características, também serão classificados como reportáveis.

Mas é na Lei da Administração Fiscal onde se pontuou a forma na qual a declaração deverá ser reportada às autoridades. Como de praxe, tem-se um instrumento burocrático em forma de formulários que, uma vez preenchidos, devem ser enviados no prazo de 45 dias úteis, prorrogáveis por igual período, contados da data em que a operação é qualificada como reportable arrangement.

Em suma, a lei prevê, dentre outras exigências, que seja feita a) a descrição detalhada de cada passo e das características-chave dos arranjos tributários, incluindo aqueles atrelados a este; b) a descrição detalhada dos benefícios fiscais assumidos por todos os participantes da relação em razão da operação, incluindo, mas não se limitando a, deduções fiscais e diferimento de renda.[4] 

No universo dos reportable arrangements a cautela jamais poderá ser dispensada. Tendo em vista a gama de dispositivos jurídicos e as interpretações descritas em ato da SARS, é preciso que o encarregado da elaboração dos planejamentos fiscais detenha minucioso conhecimento sobre os diplomas, os quais precisam ser analisados conjuntamente.[5] 

É que, ao contrário do estabelecido pela MP 685, onde o polo passivo se refere aos contribuintes e responsáveis tributários, a África do Sul permite que os planejadores -  consultores incumbidos da organização dos planejamentos -, também submetam a declaração.

4. AS PUNIÇÕES NO ÂMBITO DO REPORTABLE ARRANGEMENTS

Há um preço para o silêncio. A Lei da Administração Fiscal prevê a multa de, em números aproximados, a) R$ 12.500,00, quando o contribuinte ou responsável tributário deveria ter realizado a declaração e não a faz, ou b) R$ 25.000,00, nos casos do planejador. A multa incide para cada mês de inércia, até o limite máximo de doze meses. Ao compararmos as multas, fica claro o peso maior que o consultor suporta.

E não é só. Há ainda a previsão da multa em dobro, caso o benefício fiscal, experimentado com o arranjo efetuado, exceda o montante de R5 milhões (de rands, moeda sul africana), o equivalente a, em valores aproximados, R$ 1.250.000,00. E mais: a multa será triplicada quando o benefício exceder a quantia de R10 milhões (R$ 2.500.000,00). Assim, o valor máximo que uma multa pode alcançar é o de R3.600.000,00 ou R$900.00,00. [6]

Um teto sobre a pretensão punitiva foi, portanto, estabelecido. No caso do Brasil, a Medida Provisória em vigor homenageia, em seu art. 12, a omissão dolosa, atraindo a multa de 150% prevista no parágrafo 1º do artigo 44 da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996.

Ocorre que, ao contrário da África do Sul, que procurou demarcar o cerco em torno das declarações ao prever regras claras, inclusive com previsões sobre casos de remissão da multa, o Brasil lançou mão de regras amplas.

5. A LEGISLAÇÃO E ATOS DA AUTORIDADE FISCAL SUL AFRICANA: O ZELO À SEGURANÇA JURÍDICA

Uma das maiores críticas em torno da MP 685 reside na concepção de regras abstratas, insculpidas principalmente pelo art. 7o, o que ensejou, inclusive, a interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB.[7] 

É na Lei da Administração Fiscal e nos atos emanados pela SARS onde o modelo atual adotado pela África do Sul delimita expressamente as principais operações que deverão ser reportadas, além de procurar atender os padrões do sistema contábil internacional. A ideia é diminuir o campo da subjetividade e aumentar o da legalidade, primando pela segurança jurídica. 

Além disso, foram igualmente estabelecidas exceções à obrigação de reportar as estratégias de planejamento tributário, de modo a evitar uma avalanche de informações desnecessárias. É o caso, obedecido os limites da lei, de negócios jurídicos específicos onde a vantagem obtida com a elisão não exceda a R5 milhões (R$ 1.250.000,00).[8] 

As previsões normativas atingem, em regra, os planejamentos tributários sofisticados, nada obstante a regulação de estratégias mais simplórias, como as que envolvem vendas de ações e funding dos chamados trusts, quando estes estiverem além das fronteiras do país. 

Para ilustrar, um dos tipos de transações financeiras  que pode vir a ser declarada é a que dispõe sobre o cálculo de juros - nos termos definidos pela Lei de Imposto de Renda -, custos de financiamento, taxas ou qualquer outro encargo totalmente ou parcialmente dependente dos pressupostos relacionados ao tratamento fiscal daquela operação tributária, como, por exemplo, contrato de empréstimo e acordo de recompra. [9] 

Outra possível divulgação obrigatória volta-se ao lucro antes dos impostos, isto é, aquele que, anterior à dedução do imposto de renda sobre ganhos de capital, estiver além dos limites razoáveis esperados, considerando as despesas ocorridas e eventuais deduções de tributos de outra jurisdição. 

Por fim, os exemplos aqui trazidos são apenas uma breve leitura da gama tributária explorada pelas legislações sul africanas vigentes e pela nota pública n. 212 da SARS, já que os vários elementos e a singularidade de cada situação demandaria uma infinidade de páginas para cada caso abraçado pela norma. 

A intenção é demonstrar a abordagem dada pelas autoridades fiscais aos planejamentos tributários e o cuidado com a segurança jurídica, instrumento que compõe a busca pelo fortalecimento e cooperação no diálogo entre Estado e contribuinte.                      

6. CONCLUSÃO

Um dia, o objetivo de Platão foi o de redesenhar a conduta humana e erguer instituições ideais para a sociedade. "Na República e nas Leis", o moralismo socrático concedeu aos "reis-filósofos" o poder político de estabelecer padrões de vida pública e privada, já que seriam capazes de distinguir o certo do errado.

Atualmente, corremos por uma via estreita e eterna em busca do aperfeiçoamento das instituições e de um sistema eficiente para o máximo possível de pessoas. No Direito Tributário, essa premissa vem ganhando cada vez mais corpo.

Por isso, a segurança e simplicidade, um dos cânones da tributação definido por Adam Smith, devem compor o fortalecimento das instituições e do Estado de Direito, afastando o ideal tirânico de um Conselho Noturno criado por Platão.

Os planos de ações contidos no BEPS são uma tentativa nobre de uma movimentação multilateral entre as nações em busca de cooperação. Não é concebível que medidas feitas às pressas se escondam atrás do status de padrão internacional para impor regras arbitrárias, que fogem da real intenção de uma boa causa e afastam pilares de sustentação econômica.

Como se vê, temos muito o que aprender com a África do Sul, exemplo de um extraordinário desenvolvimento no campo tributário e no reforço do elo da segurança jurídica. O instituto do Mandatory Disclosure Rules é apenas um deles. Mais do que um laboratório de direitos humanos para o Brasil, o país agora nos ensina sobre o diálogo transparente entre Estado e sociedade. É bom que prestemos atenção.

 

[1]CROOME, Beric. (Org.). Tax Law: An introduction. 1. ed. Cape Town: Juta, 2013, p. 250.

[2] Disponível em: http://www.taxcom.org.za/termsofreference.html, acesso em: 03/09/2015.

[3] Os dispositivos referentes aos reportable arrangements da Lei de Imposto de Renda (Income Tax Act) foram revogados pela Lei da Administração Fiscal (Tax Administration Act).

 

[4] Nos termos da s 38 da Lei da Administração Fiscal.

[5] De acordo com a s 34 da Lei da Administração Fiscal, os arranjos financeiros que deverão ser abertos são "qualquer transação, operação, esquema, acordo ou entendimento (obrigatório ou não)".

[6]Conformes 212(1) da Lei da Administração Fiscal. Ademais, benefício fiscal, aqui, significa o ato de evitar, postergar ou reduzir a carga tributária.

[7] ADI 5366

[8] As ss 36(1) a (3) da Lei da Administração Fiscal listam certos tipos de transações que serão exceções à regra de revelação obrigatória. Já os arranjos previstos na s 35(1) também foram tidos como exceção pela SARS quando a vantagem recebida por todos os participantes daquela operação não ultrapassar R5 milhões.

[9]A s 24J da Lei de Imposto de Renda dispõe sobre como os juros deverão ser calculados.