MP 685 e a obrigação de declarar o planejamento tributário: Ruling ou Bullying?

por Fernando Tonanni
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
Master of Laws (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda
Sócio do Machado Meyer em São Paulo
Bruno Gomes
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 
Master of Laws (LL.M.) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda
Advogado sênior do Machado Meyer em São Paulo

 

O título deste artigo foi inspirado na reação de um empresário brasileiro ao tomar conhecimento das regras introduzidas pelos artigos 7º a 12º da Medida Provisória nº 685, publicada em 21 de julho de 2015 (“MP 685”). Ainda que exagerada, tal reação denota o cuidado que se deve ter na análise de tais regras.

O artigo 7º da MP 685 estabelece que o conjunto de operações realizadas pelo contribuinte no ano calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado à Secretaria da Receita Federal do Brasil (“RFB”) até 30 de setembro[1] de cada ano, em três hipóteses: (i) quando os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes, (ii) quando a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou (iii) quando tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da RFB.  

A declaração que relatar atos ou negócios jurídicos ainda não ocorridos será tratada como consulta à legislação tributária. O regime deve ser regulado pela RFB, inclusive com a identificação dos tipos de operação dispensadas da declaração.

Na hipótese de a RFB não reconhecer, para fins tributários, as operações declaradas, o contribuinte será intimado a recolher ou a parcelar os tributos devidos, acrescidos de juros de mora. Na hipótese de não ser apresentada a declaração; sua apresentação com omissão em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico; ou na hipótese de falsidade material ou ideológica e interposição fraudulenta de pessoas, ficará caracterizada a omissão dolosa do contribuinte com o intuito de sonegação ou fraude, sendo os tributos cobrados com juros de mora e multa majorada de 150%.

A Exposição de Motivos nº 80/2015 encaminhada à Presidência da República com as justificativas para a edição da MP destaca que o principal objetivo da medida é instruir a administração tributária com informação tempestiva a respeito de planejamento tributário, além de conferir segurança jurídica à empresa que revela a operação. A proposta é baseada no Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (conhecido como BEPS). Em linhas gerais, o Plano de Ação do BEPS é uma iniciativa da OCDE em conjunto com os países membro do G20 que tem por objetivo uma reforma nos sistemas tributários, visando combater a transferência de lucros entre países e a redução da base tributável em decorrência de arranjos artificiais.

A Ação 12 do BEPS, que claramente serviu de inspiração para a MP 685, efetivamente endereça a necessidade de se desenvolver regras para a divulgação de planejamentos tributários agressivos. Discutem-se obrigações de declaração voluntária impostas aos contribuintes e também trocas de informações entre países. O Plano de Ação do BEPS ainda está em fase de implementação e prevê a realização de consultas públicas. Uma das preocupações endereçadas em todo o trabalho do BEPS é o respeito à soberania tributária dos países e aos conceitos e princípios legais de cada nação.

No que se refere à Ação 12, foi publicada uma minuta de relatório em 31 de março de 2015, momento em que a sociedade em geral foi convidada a apresentar comentários sobre a minuta e as sugestões sobre o tema. Após o recebimento das sugestões, também consolidadas em um relatório publicado em 4 de maio de 2015 (que inclui uma manifestação da Confederação Nacional da Indústria – CNI), uma audiência pública foi realizada em Paris em 11 de maio de 2015 na qual foram debatidas a minuta original e as sugestões, com o objetivo de alcançar maior harmonização sobre os pontos mais controversos. Espera-se que o relatório final com efetivas recomendações seja publicado em Setembro de 2015. Não existe, portanto, um consenso internacional acerca da obrigatoriedade de divulgação de informações acerca de planejamento tributário pelos contribuintes e a forma de implementar tal obrigatoriedade. Existem, contudo, alguns princípios descritos como fundamentais pela minuta de relatório, dentre as quais se destaca a necessidade de as regras serem claras e de fácil compreensão.

Outro ponto fundamental endereçado pela Ação 12 é a definição do que deve ser divulgado à administração tributária, com o estabelecimento de um teste de entrada (thresholds) de forma a filtrar o volume de operações que deve ser declarado, bem como a determinação das características distintivas das operações (hallmarks) que as levariam a ser divulgadas ao fisco, por conterem indicações de um possível planejamento tributário agressivo. Exemplos de testes de entrada são a evidencia de que o benefício fiscal foi o único objetivo para a implementação de determinada estrutura, eventualmente alinhada com um teste de valor mínimo de operação. As características distintivas, por sua vez, podem ser genéricas ou específicas, e determinam elementos que uma vez verificados trariam a transação para o universo da divulgação obrigatória. Exemplos de hallmarks genéricos são a existência de cláusula de confidencialidade ou a fixação de honorários de êxito com base no benefício fiscal obtido com a operação. Os hallmarks específicos, por sua vez, podem representar tipos de operação que a administração tributária entenda que possam facilitar estruturas de planejamento tributário agressivo, como o uso de prejuízos, operações de leasing e instrumentos híbridos, dentre outros. A OCDE aponta que o uso de threholds e hallmarks pode se dar de forma conjunta ou que, em alguns casos, apenas a definição dos hallmarks é tida por suficiente (como é o caso da experiência dos Estados Unidos).

A Ação 12 do BEPS reconhece que medidas alternativas já vêm sendo adotadas por determinados países com certo êxito no compartilhamento de informações entre fisco e contribuinte, como por exemplo o chamado regime de Rulings, adotado por países como Holanda e Luxemburgo. O Ruling permite aos contribuintes apresentar às autoridades fiscais a operação que se pretende implementar, de forma prévia e, portanto, antes da ocorrência do fato tributável. Em geral, a segurança jurídica é atingida na medida em que o contribuinte pode decidir pela adoção ou não da operação pretendida após conhecer o entendimento vinculante manifestado pela autoridade fiscal. O fato de o Ruling ser uma opção do contribuinte é citado pela Ação 12 como uma limitação ao combate de planejamentos fiscais abusivos, na medida em que em tais situações os contribuintes provavelmente não buscam o reconhecimento da operação junto à autoridade fiscal.

Inicialmente, deve-se aplaudir a contínua intenção do Governo de conferir maior alinhamento da legislação tributária brasileira às melhores práticas internacionais. A criação de um diálogo entre fisco e contribuinte e de institutos que permitam uma maior segurança jurídica para as decisões empresariais é, há muito, aguardado pela comunidade jurídica e empresarial. Em todo o caso, é recomendável que os institutos jurídicos adotados internacionalmente sejam internalizados de forma consistente no Brasil e, principalmente, que seja garantido o respeito aos limites constitucionais ao poder de tributar.

Não é a primeira vez que o Brasil busca internalizar normas e conceitos internacionais com reconhecida eficácia no combate ao abuso ou à evasão fiscal. Exemplos de regras anti-abuso são a introdução das regras de preços de transferência e de sub capitalização, de tributação de lucros no exterior, dentre outras. Contudo, tal como ocorreu no passado, há o risco de que tais experiências internacionais sejam implementadas de forma transversa, distorcendo-se os conceitos e criando-se verdadeiras jabuticabas jurídicas. Além disso, diferentemente do que ocorre em economias maduras e do que se tem buscado no âmbito do BEPS, o processo legislativo brasileiro não é precedido de um amplo debate junto aos diferentes setores da economia.

Uma diferença fundamental da medida proposta em relação ao chamado regime de Ruling, por exemplo,consiste no fato de que o Ruling permite que o contribuinte discuta, anteriormente à decisão sobre a adoção ou não de determinada operação, o seu tratamento tributário junto às autoridades competentes. Essa é a característica que permite ao regime conferir segurança jurídica às decisões empresariais.

Em discurso realizado na cerimônia de reabertura das atividades do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) o Ministro Joquim Levy afirmou que “na busca de um diálogo constante com a sociedade, o governo lançou uma medida provisória com inovação que tem curso na OCDE. O contribuinte anuncia para a Receita [Federal] movimentos relevantes, que alguns poderiam chamar planejamento fiscal. O governo espera que haja comunicação, que a empresa comunique as bases da estratégia tributária, de maneira que não precise chegar um auditor e criar litígio”.[2]

Contudo, ao contrário do quanto afirmado, no regime proposto pela MP 685, não há espaço para diálogo entre fisco e contribuinte em relação a forma e condições de implementação de determinada operação. Além disso, com exceção da situação de operações não implementadas, verifica-se uma obrigação imposta ao contribuinte de declarar as operações realizadas no ano calendário anterior, ou seja, após sua adoção. Em muitos casos, vislumbra-se que no momento da entrega da declaração o fato gerador tributário já terá ocorrido. Nesses casos, o não reconhecimento da operação pela autoridade fiscal constituirá o contribuinte em mora.

Ademais, a despeito das boas intenções, parece-nos que a declaração imposta pela MP 685 deve ser cuidadosamente avaliada, à luz de potenciais violações de proteções constitucionais garantidas aos contribuintes.

Dentre as hipóteses em que a declaração é obrigatória, encontram-se aquelas em que os negócios realizados não possuam razões extratributárias relevantes ou envolvam forma não usual. A MP 685 não estabelece os conceitos de “razões extratributárias relevantes” e “forma usual”. A falta de definição legal de tais conceitos pode, inclusive, ser entendida como um reconhecimento de que não cabe ao legislador ou até mesmo às autoridades administrativas estabelecer todas as razões empresariais, operacionais ou comerciais que justifiquem a adoção de uma operação ou reorganização empresarial, ou o conceito de forma usual. Em uma economia dinâmica, as razões e formas adotadas para práticas empresariais evoluem e não comportam definição em lei. Como mencionado acima, as recomendações no escopo do Plano BEPS é que exista uma descrição dos hallmarks que definam as operações a serem objeto da declaração, o que não foi feito na MP 685.

Deixar tais conceitos ao arbítrio da administração tributária, além de violar o princípio constitucional da legalidade, segundo o qual compete à lei a definição das obrigações tributárias, pode trazer enorme insegurança jurídica para a vida empresarial.

Tal efeito se agrava em decorrência do disposto no Artigo 9º da MP 685, segundo o qual a falta da declaração acarreta na presunção de que o contribuinte praticou ato doloso de sonegação ou fraude, passível de multa de 150%. Ora, conduta dolosa para a prática de sonegação ou fraude se prova à luz dos conceitos legais pertinentes; não se presume. Ademais, tal qualificação imputaria ao contribuinte a prática de crimes contra a ordem tributária, conforme delineado na Lei nº 8.137/1990, de forma que as consequências da declaração proposta extrapolam a esfera tributária. Parece-nos que a regra acima perpetua uma presunção absoluta, que não admite prova em contrário e que é repudiada pela Constituição Federal em decorrência do princípio de presunção de inocência.

Adicionalmente, em nossa visão, a regra, na forma como introduzida, não se prestaria a normatizar a desconsideração do chamado negócio jurídico indireto, que atualmente não encontra respaldo no sistema legal brasileiro e há muito é objeto de intensos debates no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Aparentemente, busca-se, por via transversa, regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, segundo o qual aautoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.” Ora, a regulamentação requerida via lei ordinária não seria satisfeita pela obrigação imposta ao contribuinte de declarar os atos e negócios jurídicos praticados, para aceitação discricionária pela autoridade fiscal, sem que sejam estabelecidos em lei os critérios para tal aceitação.

As razões brevemente apontadas acima, além de tantas outras que podem ser identificadas a partir de uma análise mais cuidadosa da norma, deveriam ser consideradas em um amplo debate da MP 685 pela sociedade, antes de sua conversão em lei. Tal afirmação é inclusive evidenciada por diversos acontecimentos recentes em torno da MP 685. Dentre tais acontecimentos, destaca-se a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.366/2015 pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB, atualmente em trâmite no Supremo Tribunal Federal, que objetiva a declaração da inconstitucionalidade dos artigos 7º a 13 da MP 685. Da mesma forma, em 1º de setembro último, um contribuinte obteve liminar nos autos do Mandado de Segurança nº 0016111-48.2015.4.036100, em trâmite na Justiça Federal de São Paulo, na qual foi reconhecido seu direito a não apresentar a declaração, tendo sido afirmado na decisão que “a obrigação, à primeira luz, não observa o princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF), da livre concorrência (art. 170, IV, CF) e o da propriedade privada (art. 170, II, CF), ao suprimir do contribuinte a autonomia de equacionar seus negócios da forma que melhor entender.

Não há como negar que, no contexto econômico-jurídico mundial, a luta contra os planejamentos tributários agressivos e a maior transparência nas relações entre as autoridades fiscais e os contribuintes são inevitáveis e, até certo ponto, desejáveis. O estabelecimento de um maior diálogo entre fisco e contribuinte que possa, em respeito aos princípios legais e constitucionais, conferir maior segurança jurídica deve ser aplaudido.

Contudo, é preciso cuidado para que a busca por tais objetivos não seja utilizada como ferramenta para a desconsideração de regras e princípios insculpidos no sistema tributário e simples aumento da arrecadação.

De toda forma, o contexto internacional do BEPS e a discussão trazida pela MP 685 para a declaração dos atos e negócios jurídicos devem servir como ponto de atenção aos contribuintes, reiterando-se a recomendação para um cuidado cada vez maior na análise das operações a serem implementadas e para que os contribuintes estejam preparados para documentar as razões comerciais, operacionais, societárias e econômicas que pautam as decisões empresariais e compartilhar tais razões com as autoridades fiscais.



[1] O subsecretário da RFB, Iágaro Jung Martins, afirmou em entrevista que a declaração não será cobrada esse ano, pois a RFB aguardará a discussão da MP 685 pelo Congresso Nacional para apresentar a regulamentação sobre o tema e tornar a declaração obrigatória para os próximos anos. Contudo, até o momento em que este artigo foi finalizado ainda não havia sido publicado nenhum ato nesse sentido.