A Cobrança Administrativa Especial instituída pela Portaria RFB nº 1.265/ 2015

por Vivian Casanova de C. Eskenazi
 sócia da área tributária do Barbosa, Mussnich & Aragão
Carolina Carvalho de Andrade
advogada do Barbosa, Mussnich & Aragão

 

 I.  INTRODUÇÃO

No dia 04 de setembro, foi publicada a Portaria RFB nº 1.265/15, que instituiu os procedimentos para a Cobrança Administrativa Especial no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, pretendendo agilizar a cobrança de tributos e a arrecadação federal.

A Cobrança Administrativa Especial abrangerá, obrigatoriamente, os créditos tributários que estejam na condição de exigíveis, cujo somatório, por sujeito passivo, seja igual ou superior a R$ 10.000.000,00. A referida Portaria prevê, ainda, que a unidade da Receita Federal do Brasil poderá incluir na Cobrança Administrativa Especial outros créditos tributários que não estejam enquadrados nos critérios de créditos exigíveis e em valor total igual ou superior a R$10.000.000,00.

Na linha do procedimento estabelecido para tal cobrança, a Portaria RFB nº 1.265/15 prevê, em seu artigo 2º, algumas medidas sancionatórias a serem adotadas em relação aos contribuintes que, intimados, não regularizem os créditos tributários abrangidos pela Cobrança Administrativa Especial. E é nesse aspecto que as controvérsias entre a Receita Federal do Brasil e os contribuintes podem começar a surgir.

A princípio, tal Portaria aparenta estar apenas regulamentando um procedimento administrativo de cobrança do crédito tributário pela Receita Federal do Brasil com enfoque nos altos valores que seriam devidos aos Cofres Públicos. 

Inclusive, em uma leitura inicial, algumas medidas sancionatórias aparentam ser mera reprodução de suas legislações específicas. Contudo, ao se analisar detidamente o assunto, é fácil verificar que a Receita Federal do Brasil extrapolou sua competência regulamentar, criando e inovando em relação a medidas sancionatórias não previstas na legislação específica, como passamos a esclarecer.

 II. ANÁLISE DAS MEDIDAS SANCIONATÓRIAS PREVISTAS NA PORTARIA RFB nº 1.265/2015

Ao analisar as medidas sancionatórias previstas no artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, dando um enfoque nas legislações específicas existentes, poderíamos dividi-las em três grupos, sendo:

i) medidas que reproduzem penalidades já previstas em legislações específicas;

ii) medidas que estabelecem penalidades não previstas em legislações específicas; e

iii) medidas que estabelecem penalidades, as quais extrapolam as sanções previstas em legislações específicas.

Com relação às medidas sancionatórias mencionadas no grupo (i) acima, não nos parece que se faça necessária a edição de uma norma regulamentadora exclusivamente para reproduzir uma disposição exatamente como contida nas legislações específicas.

Essa situação verifica-se, por exemplo, no caso da medida sancionatória prevista no inciso XIX, do artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, que determina o lançamento de ofício de multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do pagamento mensal do tributo determinado sobre base de cálculo estimada, que deixou de ser efetuado, ainda que tenha sido apurado prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no ano-calendário correspondente.

Previsão idêntica a essa consta no artigo 44, inciso II, alínea ‘b’, da Lei nº 9.430/96, que é a norma legal cabível para imposição de tal penalidade.

Outro exemplo de medida sancionatória que se enquadra no grupo (i) acima, é o caso do inciso XXIV, do artigo 2º, de tal Portaria, que prevê a exclusão do parcelamento e do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut), ficando a entidade proibida de usufruir de incentivo ou benefício fiscal previsto na legislação federal ou de receber repasses de recursos públicos federais da administração direta ou indireta pelo prazo de 02 (dois) anos, contado da data da rescisão, no caso das entidades desportivas profissionais de futebol que aderiram ao Programa.

Essa penalidade, da mesma maneira, já se encontra disciplinada nos artigos 4º e 18, da Lei nº 13.155/15.

Com relação às medidas sancionatórias mencionadas no grupo (ii) acima, verifica-se que a Receita Federal do Brasil, a pretexto de compilar essas regras as quais já constariam em legislação específica, em verdade, por meio da edição da referida Portaria, está criando sanções ainda não previstas nas legislações pertinentes.

A título exemplificativo dessa hipótese, podemos citar o inciso VI, do artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, o qual determina oencaminhamento ao Ministério Público Federal de Representação Fiscal para Fins Penais, conforme estabelecido no artigo 83, da Lei nº 9.430/96.

Ocorre que o artigo 1º, da Portaria RFB nº 2.439/10, que estabelece os procedimentos a serem observados na comunicação ao Ministério Público Federal de fatos que configurem, em tese, crimes contra a ordem tributária, prevê que o Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil deverá formalizar representação fiscal para fins penais perante o Delegado ou Inspetor-Chefe da Receita Federal do Brasil responsável pelo controle do processo administrativo fiscal sempre que, no exercício de suas atribuições, identificar atos ou fatos que, em tese, configurem crime contra a ordem tributária ou contra a Previdência Social.

Ou seja, para que essa Representação Fiscal para Fins Penais seja realizada, é essencial que a Receita Federal do Brasil esteja diante de uma das hipóteses que configurem crime contra a ordem tributária enquadrável nos artigos 1º e 2º, da Lei nº 8.137/90.

Certamente, o fato de o contribuinte simplesmente deixar de regularizar seus créditos tributários, quando intimado da Cobrança Administrativa Especial, independentemente do valor, por si só, não constitui crime contra a ordem tributário, conforme se pode verificar pela simples análise dos artigos 1º e 2º, da Lei nº 8.137/90.

 Portanto, a determinação do inciso VI, do artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, claramente, contraria a Portaria RFB nº 2.439/10, bem como a Lei nº 8.137/90, prevendo que haverá uma Representação Fiscal para Fins Penais para uma situação que sequer representa crime contra a ordem tributária.

Outro exemplo desta situação é o inciso XI, do artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, que prevê a possibilidade de comunicação às respectivas Agências Reguladoras para que seja revogada a autorização para o exercício da atividade, no caso de sujeito passivo detentor de Concessões e Permissões da Prestação de Serviços Públicos, tendo em vista a ausência de regularidade fiscal para com a União, em conformidade com o disposto no inciso IV, do artigo 27, no inciso IV, do artigo 29 e no inciso XIII, do artigo 55, da Lei nº 8.666/93, c/c o artigo 14, o inciso VII do parágrafo 1º do artigo 38 e o parágrafo único do artigo 40 da Lei nº 8.987/95.

No entanto, ao se analisar as Leis nºs 8.666/93 e 8.987/95, que instituem as normas para licitações e contratos da Administração Pública, é possível verificar que tais Leis não preveem que a Receita Federal do Brasil possa determinar a revogação de concessão ou permissão. Ora, não é competência da Receita Federal do Brasil envolver-se na relação dos concessionários e permissionários com as respectivas agências reguladoras da atividade objeto de contrato de prestação de serviço público.

Assim, não caberia ao Secretário da Receita Federal do Brasil extrapolar as suas atribuições previstas na Portaria MF nº 203/12, para exigir das agências reguladoras a revogação da autorização para o exercício da atividade do contribuinte que não apresentar certidão de regularidade fiscal. Cabe apenas à própria agência reguladora fiscalizar as atividades objeto de contrato de prestação de serviço público.

Quanto às medidas sancionatórias mencionadas no grupo (iii) acima, acreditamos que a Portaria RFB nº 1.265/15 está claramente ampliando o escopo de aplicação dessas sanções.

 Este é o caso, por exemplo, do inciso II, artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, que prevê a exclusão do sujeito passivo do Programa de Recuperação Fiscal (Refis), ou do parcelamento a ele alternativo, estabelecidos pela Lei nº 9.964/00, com exigibilidade imediata da totalidade do crédito confessado e ainda não pago, bem como automática execução da garantia prestada, quando existente, restabelecendo-se, em relação ao montante não pago, os acréscimos legais na forma da legislação aplicável à época da ocorrência dos respectivos fatos geradores, conforme definido por aquele ato legal.

Contudo, a Lei nº 9.964/00 traz, no artigo 5º, inciso II e parágrafo 1º, a previsão de que, em caso de inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, o que primeiro ocorrer, relativamente a qualquer dos tributos e das contribuições abrangidos pelo REFIS, a pessoa jurídica será excluída do Programa por ato do Comitê Gestor.

Ou seja, de acordo com a legislação específica, no caso a Lei nº 9.964/00, a exclusão do REFIS dependerá de ato específico do Comitê Gestor e decorrerá da inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, quanto aos tributos abrangidos em tal parcelamento especial.

Portanto, a exclusão do REFIS não guarda qualquer relação direta com o valor de débitos exigíveis perante a Receita Federal do Brasil. Ainda que um sujeito passivo tenha débitos exigíveis de determinado tributo em valor superior a R$ 10.000.000,00, caso esse tributo não esteja abrangido no REFIS e a inadimplência não seja por três meses consecutivos ou seis meses alternados, não será aplicável a regra prevista no artigo 5º, inciso II e parágrafo 1º, da Lei nº 9.964/00.

Como outro exemplo desta situação, citamos o inciso IX, do artigo 2º, da Portaria RFB nº 1.265/15, que prevê a realização do arrolamento de bens e direitos para acompanhamento do patrimônio do sujeito passivo, com base no disposto nos artigos 64 e 64-A, da Lei nº 9.532/97.

De acordo com tal dispositivo da Portaria RFB nº 1.265/15, sempre que o crédito tributário exigível for superior a R$ 10.000.000,00 e o contribuinte, intimado, não regularizar os créditos tributários abrangidos pela Cobrança Administrativa Especial, caberá o arrolamento de bens e direitos para acompanhamento do seu patrimônio.

Contudo, o artigo 64[1] da Lei nº 9.532/97, prevê, como requisito para realização desse arrolamento de bens, que o valor total do crédito tributário seja superior a trinta por cento do patrimônio conhecido do sujeito passivo. 

Isto é, de acordo com a legislação específica, a realização do arrolamento de bens e direitos não está diretamente relacionada ao valor do débito, conforme pretendido na Portaria RFB nº 1.265/15, mas sim à relação percentual desse valor com o patrimônio do sujeito passivo.

Portanto, caso o débito exigível seja superior a R$ 10.000.000,00, contudo, esse montante seja inferior a trinta por cento do patrimônio do sujeito passivo, não caberá o arrolamento de bens e direitos, nos termos do artigo 64 da Lei nº 9.532/97.

Nota-se, portanto, que, em relação àquelas medidas sancionatórias enquadráveis nos grupos (ii) e (iii) acima, a Portaria RFB nº 1.265/15 está claramente inovando ou extrapolando as penalidades já previstas nas legislações específicas, o que importa em violação ao princípio da legalidade, previsto no inciso II, do artigo 5º[2], da Constituição Federal, e no inciso V, do artigo 97[3], do Código Tributário Nacional.

Isto porque, segundo tal princípio, somente a lei pode estabelecer a aplicação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas.

Nesse sentido, a imposição de penalidades e/ou medidas sancionatórias é matéria de competência do Poder Legislativo. À Receita Federal do Brasil compete apenas a regulamentação das hipóteses já previstas em Lei, nos termos do artigo 100, inciso I, do Código Tributário Nacional, não podendo o Secretário da Receita Federal do Brasil extrapolar as suas atribuições previstas na Portaria MF nº 203/12.

Assim sendo, acreditamos que a Portaria RFB nº 1.265/15 mostra-se claramente desnecessária para algumas hipóteses e violadora do princípio da legalidade em outros casos.

III. CONCLUSÃO

No presente artigo, buscamos demonstrar que as disposições da Portaria RFB nº 1.265/15 não deveriam ser mantidas ou podem ser objeto de questionamento pelos contribuintes, na medida em que a atividade de cobrança do crédito tributário pela Receita Federal do Brasil já é matéria de sua competência, a qual se encontra devidamente regulamentada.

Além do que, tal Portaria, a pretexto de regular o procedimento de Cobrança Administrativa Especial para garantir a recuperação de altos valores que seriam devidos aos Cofres Públicos, está, em verdade, reproduzindo penalidades já previstas em legislações específicas, hipótese que evidencia a sua desnecessidade, ou está inovando/extrapolando as medidas sancionatórias previstas em outras Leis, quando se mostra violadora do princípio da legalidade, garantido constitucionalmente.



[1] “Art. 64. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido.”

[2] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

[3] “Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

(...)

V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;”