A Cobrança Administrativa Especial da Portaria da Receita Federal do Brasil n. 1.265/15

 por Flávio Couto Bernardes
Doutor (2006), Mestre (2000) e Bacharel (1994) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
 Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
 Professor de Direito Tributário e Financeiro da UFMG
 Procurador do Município de Belo Horizonte
 Advogado
Frederico Machado Marques
Diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário Jovem – Abradt Jovem
 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2015)
 Advogado

 

A recente Portaria da Receita Federal do Brasil (RFB) n. 1.265/2015 instituiu procedimentos para a Cobrança Administrativa Especial - CAE no seu âmbito.A referida medida tem gerado algumas polêmicas desde a sua publicação no Diário Oficial da União em 04/09/2015.

Para alguns especialistas, o ato normativo em comento viola alguns direitos do contribuinte, obrigando os sujeitos passivos a quitarem as suas dívidas atemorizados pela previsão de sanções desproporcionais no âmbito administrativo, penal e pecuniário. Lado outro, outros profissionais militantes da área afirmam que tanto as medidas, quanto os limites para sua aplicação, já se encontram previstos na legislação vigente e na jurisprudência pátria, sustentando que a presente Portaria é uma mera compilação de medidas possíveis de serem tomadas pelo Fisco Federal. Afirmam, ainda, que não houve nenhuma inovação por parte da presente norma, mas sim uma sistematização de medidas já existentes.

O artigo 1º da Portaria dispõe que a Cobrança Administrativa Especial trata de cobrança realizada de forma prioritária, tendo como objetivo o aprimoramento dos procedimentos de recuperação de créditos tributários propiciando o aumento da arrecadação dos tributos federais. Ainda nesse sentido, dispõe em seu art. 1º, §1º que a CAE abrange de maneira obrigatória os créditos tributários que estejam na condição de exigíveis, cujo somatório, por sujeito passivo, seja igual ou maior que R$10.000.000,00 (dez milhões de reais). Nota-se, portanto, o interesse da Receita em instituir cobrança preferencial para os grandes devedores, no caso em tela, aqueles que possuem dívidas com o Fisco de no mínimo o montante mencionado acima.

Ora, entende-se por crédito tributário exigível aquele que não cabe mais recursos na esfera administrativa, momento em que o contribuinte somente poderá contestar a cobrança na esfera judicial, ou seja, é a exigibilidade do crédito tributário que possibilita a cobrança pelo sujeito ativo da obrigação tributária. Em outras palavras, a CAE tem aplicação após o transcurso do prazo para impugnação ou diante do julgamento definitivo na esfera administrativa.

A exigibilidade do crédito é adquirida a partir do momento que a autoridade administrativa constitui o crédito tributário através do lançamento, conforme preceitua o art. 142 do Código Tributário Nacional. Nesse sentido, Hugo de Brito Machado afirma:

“O crédito tributário, portanto, é o vínculo jurídico, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado (sujeito ativo) pode exigir do particular, o contribuinte ou responsável (sujeito passivo), o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária (objeto da relação obrigacional).” [i]

Isto posto, sendo o crédito a ser cobrado exigível, há que se perquirir se o Estado incorreu em violação dos Direitos do Contribuinte ao prever vinte e cinco medidas específicas, sob alegação de aprimorar os procedimentos de recuperação de crédito tributário; ou, se apenas agiu em conformidade com suas atribuições previstas, no caso em tela, no Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil e demais atos normativos compreendidos na legislação tributária.

Imperioso ressaltar que além da previsão supracitada, a Receita Federal do Brasil poderá, a seu critério, incluir na Cobrança Administrativa Especial outros créditos tributários que não se enquadrem nos critérios definidos pela Portaria:

Art. 1º - A Cobrança Administrativa Especial no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), assim definida aquela realizada de forma prioritária, deverá observar as regras estabelecidas nesta Portaria, com vistas a aprimorar os procedimentos de recuperação de créditos tributários (CT) e, consequentemente, promover o aumento e a sustentação da arrecadação dos tributos federais.
§ 1º - A Cobrança Administrativa Especial abrange, obrigatoriamente, os CT que estejam na condição de exigíveis, cujo somatório, por sujeito passivo, seja igual ou maior que R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
§ 2º - A unidade da RFB poderá incluir na Cobrança Administrativa Especial outros CT que não se enquadrem nos critérios definidos no § 1º.

Em uma primeira análise, pode-se concluir que tal medida pretende agilizar a cobrança de tributos aumentando rapidamente a arrecadação federal, sobretudo diante do momento de recessão da economia brasileira e de dificuldades nas contas públicas. Tanto é que o art. 3º da Portaria em foco prescreve o prazo máximo de seis meses para realização das medidas previstas, contados a partir da inclusão do crédito tributário na CAE.

O artigo 2º prevê em seus 25 incisos as medidas que o sujeito passivo se submeterá na hipótese da não regularização dos créditos tributários abrangidos pela Cobrança Administrativa Especial, após devidamente ser intimado.  

Nos termos da Lei n. 10.522/2002, que dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais (Cadin), é obrigatória a consulta prévia a esse sistema pelos órgãos da Administração Federal em uma série de atividades como a concessão de incentivos fiscais, celebração de contatos ou realização de operações de crédito que envolva recursos públicos. Assim, o primeiro inciso do art. 2º da Portaria 1265 prevê o envio dos dados do sujeito passivo que não efetuar o devido pagamento depois de intimado regularmente, inviabilizando operações nessa natureza enquanto houver pagamento pendente. Observa-se:

Art. 2º, inciso I da Portaria RFB 1265/2015 - encaminhamento dos dados do sujeito passivo para inclusão no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), o que inviabilizará a realização de operações de crédito que envolvam a utilização de recursos públicos, a concessão de incentivos fiscais e financeiros e a celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam desembolso, a qualquer título, de recursos públicos, e respectivos aditamentos, por órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, de acordo com o disposto no art. 6º da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002;
Art. 6º da Lei nº 10.522/2002 - É obrigatória a consulta prévia ao Cadin, pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta, para:
I - realização de operações de crédito que envolvam a utilização de recursos públicos;
II - concessão de incentivos fiscais e financeiros;
III - celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam desembolso, a qualquer título, de recursos públicos, e respectivos aditamentos.

Por sua vez, o inciso VI do instituto supracitado, prevê a possibilidade de encaminhamento ao Ministério Público Federal – MPF de Representação Fiscal para Fins Penais, nos termos da Lei n. 9.430/96 que dispõe sobre a legislação tributária federal, no tocante às contribuições sociais objeto de retenção:

Art. 2º, inciso VI da Portaria RFB 1265/2015 - encaminhamento ao Ministério Público Federal de Representação Fiscal para Fins Penais, relativa ao débito em questão, conforme estabelecido no art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996;
Art. 83 da Lei nº 9.430/1996 . A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. (Redação dada pela Lei 12.350, de 20 de dezembro de 2010).

Ademais, o inciso IX do mesmo artigo estipula o arrolamento de bens e direitos para acompanhamento do patrimônio do sujeito passivo como outra medida a ser tomada pelo Fisco Federal em caso de inadimplemento por parte do contribuinte que não regularizar os seus créditos tributários abrangidos pela CAE após intimação válida, como se depreende de seu texto, que está em consonância com lei federal:

Art. 2º, inciso IX da Portaria RFB 1265/2015 - arrolamento de bens e direitos para acompanhamento do patrimônio do sujeito passivo, com base no disposto nos arts. 64 e 64-A da Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997;
Art. 64 da Lei nº 9.532/97 - A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido.
Art. 64-A da Lei nº 9.532/97 - O arrolamento de que trata o art. 64 recairá sobre bens e direitos suscetíveis de registro público, com prioridade aos imóveis, e em valor suficiente para cobrir o montante do crédito tributário de responsabilidade do sujeito passivo. .(Incluído pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001)

 

Além das medidas relacionadas na Portaria, reitera-se que é facultado à Receita Federal adotar outros procedimentos tendentes a compelir os contribuintes a pagarem os débitos em aberto, consoante preceitua o art. 2º, §1º. Além disso, caso o contribuinte em questão, devedor de no mínimo 10 milhões de reais ao Fisco Federal seja Pessoa Jurídica, os sócios também responderão solidariamente pela dívida, conforme estipula o art. 2, § 2º da Portaria. Ressalta-se , que, no que tange à responsabilidade tributária, deve-se respeitar as previsões do Código Tributário Nacional – CTN presentes nos artigos 129 a 138, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

Vale destacar que o Coordenador-Geral de Arrecadação de Cobrança da Receita Federal afirmou em notícia veiculada no site da RFB, que as medidas contidas na Portaria estão todas previstas em lei e que muitas das críticas realizadas por tributaristas certamente são no intuito de promover o litígio.[ii]. No entanto, em que pese a RFB afirmar que a Portaria 1265/2015 apenas sistematizou regras já previstas na legislação, é imprescindível a confirmação da efetiva existência de previsão legal, caso a caso, que assegure às autoridades fiscais a prerrogativa de utilizar tais medidas, sob pena de caracterização de sanção política eivada de patente ilegalidade. Salienta-se, na oportunidade, que não se trata do objetivo precípuo desse artigo demonstrar de forma pormenorizada, inciso por inciso, que as 25 medidas possuem amparo legal anterior a publicação da Portaria.

Como destacado pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, em seu voto como relator na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 173, as sanções políticas são aquelas normas cridas com o intuito de tolher a liberdade do individuo no âmbito tributário, por vias oblíquas, a cobrança do crédito tributário, isto é, coagindo o contribuinte a satisfazer o débito tributário. O ministro afirma, ainda:

“(...) Esta Corte tem historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para tanto, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, par. ún., da Constituição), a violação do devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários) e a violação do devido processo legal manifestado no direito de acesso aos órgãos do Executivo ou do Judiciário tanto para controle da validade dos créditos tributários, cuja inadimplência pretensamente justifica a nefasta penalidade, quanto para controle do próprio ato que culmina na restrição. É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial (...) (STF. ADI 173. Min. Joaquim Barbosa. DJe-053, publicada em 20.03.2009).[iii]

Ante toda a exposição apresentada, concluímos que a presente Portaria deve ser interpretada como uma compilação de algumas medidas possíveis a serem tomadas pela RFB. Por derradeiro, frisa-se que tais medidas não podem implicar em desrespeito à legislação vigente, seus princípios e valores, tampouco consubstanciar-se em sanções políticas, sendo que eventuais abusos por parte das autoridades administrativas deverão ser questionados pelos contribuintes no Judiciário. Dessa forma, portanto, a Receita Federal do Brasil não tem a prerrogativa de inovar o ordenamento jurídico obrigando os sujeitos passivos a quitarem as suas dívidas sob a condição de serem compelidos em sanções no âmbito administrativo, penal e pecuniário estipuladas pela própria RFB.

Referências Bibliográficas

 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 173, Rel. Min.  JOAQUIM BARBOSA. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=582642, Acesso em: 15 out. 2015.

______. Receita Federal do Brasil. Portaria RFB nº1265, de 03 de setembro de 2015. Disponível em:http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=67560&visao=anotado, Acesso em: 14 out. 2015.

______. Receita Federal do Brasil. Notícia “Interpretações equivocadas sobre a Portaria 1.265/15 ajudam apenas o mau pagador de tributos”. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2015/setembro/interpretacoes-equivocadas-sobre-a-portaria-1-265-15-ajudam-apenas-o-mau-pagador-de-tributosinterpretacoes-equivocadas-sobre-a-portaria-1-265-15-ajudam-apenas-o-mau-pagador-de-tributos, Acesso em: 14 out. 2015.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 17ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros: 2000.



[i]MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 17ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros: 2000.

[iii]Confira o seguinte julgado: ADI 173, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJ 19/03/2009 (BRASIL, 2009).

 

 



[i]MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 17ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros: 2000.

[iii]Confira o seguinte julgado: ADI 173, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, DJ 19/03/2009 (BRASIL, 2009).