International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Contrato Turn Key de Máquinas e Equipamentos: ICMS e/ou ISS?

 por Ricardo Campos Padovese
Sócio do escritório Nunes & Sawaya Advogados
Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo
Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


O recente impulso que o governo federal está dando às diversas obras de infraestrutura concede novo alento a uma velha discussão sobre os limites da competência tributária dos Estados e dos Municípios quanto aos contratos turn key relativos ao fornecimento de máquinas e equipamentos.

De fato, a inclusão no Programa Nacional de Desestatização de inúmeros empreendimentos de infraestrutura, com as consequentes concessões de serviços públicos à iniciativa privada, imporá às pessoas jurídicas vencedoras das licitações o dever de levar a cabo o desenvolvimento de inúmeras obras de infraestrutura e a aquisição de inúmeras máquinas e equipamentos.

Para ficar com o exemplo mais recente, o edital da licitação da concessão da Rodovia BR-050/GO/MG imporá ao vencedor a aquisição e implantação de centro de controle operacional, sistemas de controle de tráfego, sistemas de atendimento ao usuário, sistemas de pedágio e controle de arrecadação, sistema de comunicação, sistema de pesagem, sistema de guarda e vigilância patrimonial, entre outros.

Com frequência, sistemas complexos como esses, entre outras máquinas e equipamentos, são adquiridos mediante contratos turn key, já que os adquirentes invariavelmente não possuem o conhecimento necessário para projetá-los, fabricá-los, montá-los, instalá-los e operá-los.

Assim, a fim de cumprir as obrigações assumidas em decorrência do contrato administrativo que vier a firmar com o Poder Público, é provável que o vencedor desta licitação (e também das demais que estão por vir) venha a firmar contrato turn key para a aquisição de máquinas ou equipamentos que não necessitarão ser fixados ao solo, no qual ficará estabelecido que o vendedor da máquina ou equipamento estará obrigado a projetar, fabricar, montar e instalar a máquina ou equipamento adequado à necessidade do contratante, assim como a treinar seus operadores.

É nesse contexto em que se insere o conflito de competências entre os Estados e os Municípios: surge a dúvida sobre se tais atividades (projeto, fabricação, montagem, instalação e treinamento) constituiriam parte integrante do preço da mercadoria e, pois, sujeitar-se-iam ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços ("ICMS"), ou se seriam atividades caracterizadas como prestação de serviços e, consequentemente, sujeitas ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza ("ISS").

Sendo o Direito Tributário um direito de superposição, o esclarecimento da dúvida passa necessariamente pela análise da natureza jurídica do contrato turn key.

Este contrato, também conhecido como commercial engineering, é aquele que, segundo Maria Helena Diniz[1], "abrange, além da etapa de estudo, uma fase de execução, ou seja, a construção e a entrega de uma instalação industrial em funcionamento; trata-se dos chamados contratos de turn key ou clé en main. É um contrato de compra e venda de equipamento industrial já instalado, acionado, testado e agilizado na produção, pois o vendedor deverá, além de entregar o referido equipamento vendido, fornecer a tecnologia de sua utilização, treinar o pessoal do contratante e prestar assistência técnica".

Trata-se de contrato atípico, oneroso e bilateral, que não se limita à empreitada, pois está formado da conjugação de diferentes ajustes[2], abrangendo a venda, assim como atividades prévias e posteriores, tais como o projeto, a montagem, a instalação, a colocação em funcionamento e o treinamento para a operação da máquina ou equipamento.

A questão relativa ao conflito de competências surge exatamente do fato segundo o qual, consideradas isoladamente, muitas dessas atividades poderiam ser consideradas serviços, especialmente por estarem inseridas na lista anexa à Lei Complementar nº 116, de 31.07.2003[3], ao passo que a venda do equipamento está sujeita à incidência do ICMS, nos exatos termos da Lei Complementar nº 87, de 13.09.1996.

A solução desse conflito de competências passa pela análise do disposto no artigo 155, § 2º, inciso IX, alínea "b", da Constituição Federal, segundo o qual o ICMS incidirá também "sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios".

Embora se trate de um dispositivo deveras polêmico e criticável sob inúmeros pontos de vista, ele não deixa de lançar alguma luz para a solução do conflito de competência instaurado pelos contratos turn key.

Este dispositivo não deve ser interpretado no sentido de que o Poder Constituinte concedeu aos Estados carta branca para tributarem pelo ICMS todos os serviços sobre os quais não recai o ISS, seja por não constarem da lista anexa à Lei Complementar[4], seja pelo Município não ter exercido plenamente sua competência tributária.

A interpretação mais consentânea com a rígida repartição constitucional de competências é no sentido de que este dispositivo constitucional estabelece, apenas e tão somente, que as atividades conectadas umbilicalmente ao fornecimento de mercadorias deste fazem parte. Como consequência, tais atividades não estarão sujeitas à incidência do ISS, mas sim integrarão a base de cálculo do ICMS.

O que este dispositivo constitucional quer significar é que, ao analisar determinada situação fática, o intérprete/aplicador do direito deve perquirir se determinada atividade conexa ao fato imponível do ICMS está tão umbilicalmente a ele ligado que dele não pode ser dissociado. Se a resposta for positiva, tal atividade é parte integrante do contrato de fornecimento e, pois, parte integrante da base de cálculo do ICMS; por outro lado, se a resposta for negativa, isto é, se a atividade for autônoma e apenas indireta e/ou circunstancialmente estiver ligada ao fornecimento da mercadoria, sobre ela haverá incidência do ISS.

Em outras palavras, o intérprete/aplicador deve se perguntar se determinada atividade é meio para o cumprimento do contrato de fornecimento, ou se ela constitui um fim em si mesma.

Baseado nessas premissas, o próprio legislador complementar estabeleceu que deverá integrar a base de cálculo do ICMS o "frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado"[5]. Neste caso específico, não escapou à argúcia do legislador complementar que o contrato de compra e venda mercantil, fato imponível por excelência do ICMS, pode ser entabulado prevendo a obrigação de o vendedor entregar a mercadoria onde o comprador determinar, só se podendo falar em efetivo cumprimento do contrato com sua entrega no local estabelecido por este último.

Nessa hipótese, se o contrato de compra e venda só se considera cumprido com a entrega da mercadoria, pelo vendedor, no local determinado pelo comprador, a atividade atinente ao transporte da mesma mercadoria não pode ser dissociada da compra e venda: é parte integrante deste contrato. A decorrência é que o valor do frete deverá estar inserido na base de cálculo do ICMS, já que se trata de atividade-meio para o cumprimento do contrato de compra e venda.

Por outro lado, o valor do frete não integrará a base de cálculo do ICMS quando ficar entabulado entre as partes que caberá ao comprador retirar a mercadoria vendida no estabelecimento do vendedor. Neste caso, colocando este último a mercadoria à disposição do comprador no momento avençado, estará cumprido o contrato, passando o comprador a correr o risco da coisa, se não retirar a mercadoria[6]. E mais: caberá a ele diretamente arcar com os custos do transporte para retirar a mercadoria do estabelecimento do vendedor. Assim, o transporte, que nesta hipótese não constitui atividade-meio para o cumprimento do contrato de compra e venda, não integrará a base de cálculo do ICMS incidente sobre a venda da mercadoria.

O mesmo raciocínio deve ser utilizado para se bem determinar os limites da competência tributária dos Estados e dos Municípios quanto ao contrato turn key que estabelece o fornecimento de máquina ou equipamento que será projetado, fabricado, montado, instalado (instalação que dispensa edificação) e dado treinamento aos operadores.

A análise que deve ser feita é a seguinte: o valor das atividades implicadas no contrato turn key que estiverem diretamente relacionadas ao contrato de compra e venda da máquina ou equipamento comporá a base de cálculo do ICMS, e não haverá incidência do ISS; por outro lado, se se tratar de atividade posterior ao cumprimento do contrato de compra e venda, estará sujeita à incidência do ISS, não sendo seu valor incluído na base de cálculo do ICMS.

Partindo-se dessa premissa, é necessário verificar que, para se ter como cumprido o contrato de compra e venda, o vendedor deverá projetar a máquina ou o equipamento para que este seja plenamente adequado às necessidades do comprador, caso contrário a fabricação da máquina ou equipamento sequer será possível. Após, deverá executar o projeto, isto é, deverá fabricar a mesma máquina ou equipamento; deverá efetuar o transporte de todas as partes e peças (partindo-se do pressuposto de que não é possível seu transporte já montado) para, em seguida, proceder à montagem no local onde a máquina ou equipamento funcionará (momento no qual a legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados ("IPI") considera encerrado o processo de industrialização[7]); e, por fim, a máquina ou equipamento deverá ser instalado e posto em funcionamento, para teste.

Concluídas todas essas etapas com sucesso, pode-se afirmar que o contrato de compra e venda da máquina ou do equipamento está devidamente cumprido.

Percebe-se, portanto, que todas essas atividades são meios para que seja efetivamente cumprido o contrato de compra e venda da máquina ou equipamento. De fato, nenhuma dessas atividades pode ser considerada um contrato de prestação de serviços, já que não possuem causa autônoma, isto é, ao se firmar o contrato turn key não se deseja meramente obter um projeto de engenharia que permita a fabricação da máquina ou equipamento, ou obter sua mera montagem e instalação: deseja-se o todo, a entrega de uma máquina ou equipamento em plenas condições de funcionamento.

Não é por outro motivo que, na situação inversa, o item 14.06 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003 esclarece ficar sujeita ao ISS a "Instalação e montagem de aparelhos, máquinas e equipamentos, inclusive montagem industrial, prestados ao usuário final, exclusivamente com material por ele fornecido". Ou seja, quando a instalação e a montagem forem contratadas autonomamente, aí sim constituirão um contrato de prestação de serviço, sujeito ao ISS. Caso contrário, são parte integrante do contrato de fornecimento e o respectivo valor deve ser incluído na base de cálculo do ICMS.

Por outro lado, as atividades que se colocam em momento posterior ao cumprimento do contrato de compra e venda (treinamento, no caso sob análise) ganham autonomia suficiente para não serem consideradas meras atividades acessórias (atividades-meio), até mesmo porque poderiam deixar de ser prestadas sem que se possa falar em inadimplemento da própria compra e venda da máquina ou equipamento. Por isso, constituem verdadeiro contrato de prestação de serviços, sobre elas incidindo o ISS.

Por esta razão, conclui-se que o valor atinente à elaboração do projeto, fabricação, montagem e instalação deverá ser integrado à base de cálculo do ICMS. E o treinamento para operação constitui serviço, sujeito ao ISS.



[1] Tratado Teórico e Prático dos Contratos. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 4, p. 101.

[2] BITTAR, Carlos Alberto. Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 32, p. 197-198.

[3] A título de exemplo, mencione-se a elaboração de projeto de engenharia (item 7.03), instalação e montagem de máquinas, aparelhos e equipamentos (itens 7.02 e 14.06) e treinamento (item 8.02).

[4] Neste ponto, fazemos referência ao entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, que recebe crítica de parte da doutrina, segundo o qual apenas sujeitam-se à incidência do ISS os serviços listados em Lei Complementar.

[5] Artigo 13, § 1º, inciso II, alínea "b", da Lei Complementar nº 87/1996.

[6] Artigo 492, § 2º, da Lei nº 10.406, de 10.01.2002, denominada Código Civil.

[7] Artigos 36, inciso VII, e 43, inciso VIII, do Decreto nº 7.212, de 15.06.2010, que aprovou o Regulamento do IPI.