International Standard Serial Number: ISSN 2357-9293

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Não Incidência do ICMS sobre a Energia Elétrica Destinada à Industrialização - Posição Jurisprudencial

por Leonardo Alcantarino Menescal
advogado
professor
especialista em direito tributário pelo IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará

 

1.    Uma das maiores discussões atualmente envolvendo o ICMS é a incidência do imposto sobre a energia elétrica destinada à industrialização, o que tem gerado autuações milionárias em diversos Estados do Brasil.

A polêmica envolve a alteração promovida pela Lei Complementar 87/96 (a chamada Lei Kandir), que limitou o alcance da norma constitucional prevista no art. 155, § 2°, inciso X, da CF/88, que prevê a não incidência do ICMS sobre operações que destinem a outros Estados petróleo – inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados – e energia elétrica[1].

O presente artigo versará sobre o tratamento legislativo do tema, bem como a jurisprudência dos tribunais superiores acerca da questão.

2.     A Constituição Federal, desde sua redação original - que ainda permanece íntegra – expressa no art. 155, §2°, inciso X, que o ICMS não incidirá sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica.

A Lei Maior não prevê exceções a esta regra: todas as operações interestaduais com energia elétrica estarem acobertadas pelo manto da não-incidência. A norma constitucional é bastante clara a respeito.

Contudo, em 13 de setembro de 1996 foi editada a Lei Complementar 87/96 onde, ao tratar do assunto, afirma que a não incidência do ICMS sobre o fornecimento da energia elétrica só decorrerá de operação interestadual destinada à industrialização.

A LC 87/06 regrou a matéria de forma dúplice, afirmou e reafirmando a mesma ideia quando tratou da incidência (art. 2º, §1º, III[2]) e da não incidência (art. 3º, III[3]).

É nítido, portanto, que a Lei Complementar trouxe à baila uma alteração substancial, pois ao invés da regra geral - que não comporta exceções na dicção constitucional - inverteu o entendimento, mencionando que a referida não-incidência somente ocorreria quando a energia fosse “destinada à industrialização”.

Entendemos que a Lei Complementar foi reducionista, pois afunilou o âmbito de não-incidência do ICMS na presente hipótese, criando condições para sua fruição. Tal flagrante inconstitucionalidade já foi apontada pela doutrina, capitaneada por Roque Carrazza[4]. A Lei Complementar, instrumento normativo hierarquicamente inferior, jamais poderia criar restrições ao alcance da norma constitucional. Apenas Emenda Constitucional poderia fazê-lo.

Com a LC 87/96 surgiram 02 situações distintas nas operações interestaduais de comercialização de energia elétrica:

a)Quando o destinatário for consumidor final  haverá tributação plena, com incidência do ICMS integralmente apropriada pelo Estado de destino (consumidor) por força do art. 155, §4º, I, CF/88;

b)Quando o destinatário receber esses produtos para “comercialização” ou “industrializaçãohaverá não-incidência nesta operação interestadual, passando a ocorrer a tributação pelo Estado de destino apenas das etapas posteriores do ciclo produtivo que completem as “operações relativas à circulação” desses produtos.

No que tange ao segundo grupo, o daqueles que recebem a mercadoria energia, decorrente de operações interestaduais, para industrialização, além da inconstitucional redução do escopo do dispositivo constitucional, existe ainda forte debate sobre o que seria exatamente o “processo de industrialização” da energia elétrica.

A posição costumeira do Fisco é afirmar só poder-se-ia considerar “industrialização” o processo mediante o qual se obtém a transformação da própria energia elétrica caracterizada pela redução da voltagem, o que é absolutamente errôneo, na medida em que confunde o sentido semântico do vocábulo “industrialização” para efeitos de tributação pelo ICMS, com aquele utilizado para efeitos de cobrança do imposto sobre produtos industrializados – IPI, sendo que estes são absolutamente distintos.

Isto porque para o IPI, o conceito de industrialização é central, e diz respeito ao produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo. O texto da norma (CTN, art. 46, parágrafo único) é bastante claro a respeito[5].

No caso do ICMS, pela própria natureza do tributo – que não incide sobre o produto em si, mas sim sobre operações de circulação de bens – o vocábulo industrialização evidentemente se refere à operação de circulação de mercadorias destinadas a um processo de industrialização.

Com efeito, não se pode usar o conceito de “industrialização” estabelecido pela legislação atinente ao IPI para identificar o resultado das operações relativas ao ICMS.

Neste passo cabe recordar o alerta feito por Marco Aurélio Greco[6] de que o ICMS não é um imposto real, que grava as mercadorias, mas um imposto sobre operações relativas à circulação das mesmas, o que é bastante diferente.

José Eduardo Soares de Melo, por sua vez, esclarece que “IPI e ICMS distinguem-se pela circunstância de que, o primeiro não consiste, unicamente, num ‘dar’, mas também num ‘fazer’.”[7]

Deste modo, ao largo da inconstitucionalidade da alteração legislativa promovida pela LC 87/96 ao restringir o alcance da norma constitucional erigida pelo Poder Constituinte Originário, deve-se observar que nos estritos termos da legislação complementar, considerando o aspecto material do ICMS, pode-se concluir com segurança que não haverá incidência do ICMS sobre a comercialização de energia elétrica destinada a um processo de industrialização – como, por exemplo, na cadeia produtiva do alumínio, onde a energia é o principal insumo – sendo absolutamente irrelevante se a energia elétrica em si sofrerá qualquer espécie de industrialização. 

3.    A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se coaduna com o entendimento ora ventilado a respeito da desnecessidade da industrialização da própria energia elétrica para garantir a não incidência do ICMS, bastando que seja provado que a mesma é destinada a um processo de industrialização.

Nos autos do EDRESP 201103007621, a Primeira Turma do STJ decidiu que não haverá a incidência do ICMS no fornecimento interestadual de energia elétrica a adquirente que a emprega em processo de industrialização, desde que demonstrada a natureza industrial por meio de prova pericial[8].

Interessante destacar o Voto do Ministro Relator Napoleão Nunes Maia Filho no RESP 1322072:

“Em suma, quando a Constituição se refere a operação ela não está a dizer que a não incidência do ICMS se restringe, apenas, à saída da mercadoria, mas, sim, à saída e à entrada, pois não há operação de circulação sem saída e entrada. Caso o objetivo do legislador constituinte fosse permitir a incidência do ICMS e atribuir a respectiva receita ao Estado destinatário da mercadoria, como quer o embargante, teria se utilizado da mesma técnica que empregou na redação do art. 155, § 2o., IX, a, cuja redação é dotada de maior especificidade.

9. Não é demais frisar que, no caso dos autos, a operação referida no texto constitucional em comento envolve o fornecimento de energia elétrica a sociedade empresária que desenvolve atividade de indústria, sendo esta totalmente dependente da energia fornecida, ou seja, a atividade somente se faz possível com o emprego da eletricidade no processo de industrialização de polietilenos e polipropilenos derivados do petróleo, de modo que a energia elétrica constitui verdadeiro insumo, conforme consta no laudo de fls. 473/496.”

Observe-se que além de frisar a importância do emprego da energia elétrica no processo de industrialização, na qualidade de insumo, o Ministro faz importante observação acerca da interpretação constitucional da norma de não incidência, afirmando que a mesma se dirige tanto ao Estado de origem quanto ao destinatário, o que parece ir de encontro a entendimento do STF sobre a interpretação do art. 155, § 2°, inciso X, no qual se afirma que a não incidência somente se aplicaria na saída, ou seja, estaria limitada aos Estados de origem das mercadorias[9].

4.    Em conclusão, pode-se afirmar:

a) A Constituição Federal não prevê exceções à regra do art. 155, § 2°, inciso X, pela qual todas as operações interestaduais com energia elétrica estarão acobertadas pelo manto da não-incidência do ICMS. A Lei Complementar 87/96 restringiu o alcance da norma constitucional, criando uma restrição: a não incidência do ICMS sobre o fornecimento da energia elétrica só decorrerá de operação interestadual destinada à industrialização, modificação esta que parte da doutrina, da qual nos filiamos, entende inconstitucional, vez que o texto constitucional apenas poderia ser alterado por Emenda Constitucional;

b) Nos termos da LC 87/96, considerando o aspecto material do ICMS e a própria natureza do imposto estadual, tem-se que não haverá incidência do ICMS sobre a comercialização de energia elétrica destinada a um processo de industrialização, na qual esta seja empregada como insumo,  sendo irrelevante se a energia elétrica em si sofrerá qualquer espécie de industrialização, raciocínio este que apenas seria válido no âmbito de incidência do IPI, de competência federal;

c) Segundo o posicionamento recente do STJ, haverá a incidência do ICMS no fornecimento interestadual de energia elétrica desde que a mesma seja empregada em processo de industrialização, cuja natureza industrial deve ser provada documentalmente mediante laudo técnico.

 

 



[1] Art. 155, §2º: (O ICMS)

X - não incidirá:

b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;

[2]Art. 2º - O imposto incide sobre:

§1º O imposto incide também:

III- sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente.

[3] Art. 3º - O imposto não incide sobre:

III- operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização;

 

[4] ICMS. SP, Malheiros, 12ª. edição, págs. 441 a 447.

[5] “Para os efeitos deste imposto (IPI), considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.”

[6] ICMS – Combustíveis e energia elétrica destinados à industrialização – Sentido do art. 3º, III, da LC 87/96. RDDT, 128/88, pág. 90.

[7] ICMS – Teoria e Prática, 9ª. ed., SP, Dialética, 2006, pág. 70

[8]EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. PRETENSÃO DE EFEITOS INFRINGENTES. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL. PRECEDENTES DO STJ. TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. OPERAÇÃO INTERESTADUAL DE FORNECIMENTO. NÃO INCIDÊNCIA DO IMPOSTO QUANDO A ENERGIA É DESTINADA AO PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO (LC 87/96, ARTS. 2o., § 1o., III E 3o., III). CIRCUNSTÂNCIA EVIDENCIADA NOS AUTOS POR MEIO DE PROVA PERICIAL. DECISÃO RECORRIDA FUNDADA NA ANÁLISE DE DISPOSITIVOS INFRACONSTITUCIONAIS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

(...) Portanto, na esteira dos precedentes desta Corte e considerando, sobretudo, a disciplina legal insculpida nos arts. 2o., § 1o., III e 3o., III da LC 87/96, tem-se que não haverá a incidência do ICMS no fornecimento interestadual de energia elétrica a adquirente que a emprega em processo de industrialização, tal como no caso dos autos, conforme demonstrado por meio de prova pericial. (EDRESP 201103007621, RESP 1322072. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ - PRIMEIRA TURMA. JULGADO EM 14/09/2012.)

[9] "A imunidade ou hipótese de não incidência contemplada na alínea b do inciso X do § 2.º do art. 155, da CF, restringe-se ao Estado de origem, não abrangendo o Estado de destino da mercadoria, onde são tributadas todas as operações que compõem o ciclo econômico por que passam os produtos, independentemente de se tratar de consumidor final ou intermediário." (STF. RE 190.992-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 12-11-2002, Primeira Turma, DJ de 19-12-2002.) 

No mesmo sentido: RE 338.681-AgR-ED, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 6-12-2005, Segunda Turma, DJ de 3-2-2006.